Abaixo a "consciência humana"

Contra a linguagem apelativa da igualdade maquiada! Abaixo a "consciência humana"!


A questão racial está em alta no Brasil nos últimos dias. Primeiro provocada pela declaração racista de William Waack, depois pelos apelos de pessoas em suas redes sociais, em pleno 20 de novembro (data à memória de Zumbi dos Palmares e pela consciência negra), afirmando a inexistência da consciência negra e pedindo por uma "consciência humana". Outro motivo para a grande onda de discussão é a declaração de Taís Araújo sobre a cor de seu filho e o racismo de uma socialite contra a filha de Giovanna Ewbank e Bruno Gagliasso.
É boa essa discussão em torno da negritude, mas a forma como ela aprece mostra-nos os tempos sombrios que vivemos e o caráter de urgência com que devemos tratar o racismo.
Entranhado no pensamento da sociedade até os tempos atuais, o racismo brasileiro, que durou algum tempo sob máscara de "não-há-racismo-no-Brasil", veio nos visitar logo no mês da consciência negra, o único mês que tem um dia (o único dia do ano) reservado à lembrança e ao estudo do povo negro. Ora, pois logo no único dia do ano reservado a nós, negras e negros, as mensagens das sempre piedosas pessoas da web não citaram sequer o palavrão "negro". "Consciência humana" — essa inscrição numa imagem com uma criança branca e outra negra, ou com uma mulher branca ao lado de uma mulher negra, esta com metade da face pintada de branco, aquela com metade do rosto em blackface. Vejam: até na consciência negra é necessária a presença de uma pessoa branca; e a legenda tenta deslegitimar toda a história do povo negro neste país.
Lutar pela "consciência humana" não é nada além de querer apagar a história da negritude brasileira e desconsiderar o nosso atraso em relação às questões raciais e reparação de dívida histórica. Os alemães fazem questão de lembrar o holocausto para que jamais se repita algo parecido. Os brasileiros fazem questão de tentar apagar a maior diáspora da história da humanidade, o atraso com a proibição da escravidão e, assim, a existência da raça negra no país.
Raças sociológicas/sociais que, como se não bastasse o histórico de pobreza e miséria gritantes, a desvalorização cultural afro-brasileira e o racismo institucional, são obrigadas a ouvir de uma pessoa branca que não há racismo, não há negritude, há, apenas, consciência humana. Ora, pois, racismo não é apenas ter ódio por negras, é também desconsiderar sua negritude, suas origens, e quem o faz pelo bem da "consciência humana", é também racista.
Quando prega-se a "consciência humana" sob o pretexto de que todos são iguais, isso não passa de linguagem hipócrita, porque todas estão cansadas de saber que a negritude não tem o mesmo espaço, os mesmos direitos (e privilégios), as mesmas demandas da população branca. É burro ou mal intencionado quem forja um bem-estar negro, uma igualdade. Dia ótimo para denúncia, é o 20 de novembro, e enquanto não conseguirmos concretizar todos os nossos objetivos, não há o que comemorar, não há avanço em uma área específica que nos faça esquecer outra área ferida.
Pela paz, mas pela paz na favela, no subúrbio e na vida em sociedade do povo negro. É gritando que os brancos nos ouvem (e detestam o barulho que fazemos!) de suas sacadas de art-nouveau; se falarmos baixinho, ninguém ouvirá, ninguém se incomodará e, portanto, não refletirá. A paz só vem depois que a igualdade for alcançada; durante a luta, nenhum silêncio, nenhuma garganta sem voz, nenhum peito calado. Contra a linguagem apelativa da igualdade maquiada! Abaixo a "consciência humana"!



Vinícius Siman

Escritor, diretor, crítico literário e militante dos direitos humanos. Tem nove livros publicados.
Escreve ao Ad Substantiam semanalmente às sextas-feiras.

Contato: souzasiman@gmail.com

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