Padre Cícero: 176 Anos de um reacionário de marca maior
Em
uma manhã de 11 de abril de 1872 chegava à pequena Tabuleiro Grande um padre
recém-ordenado de nome Cícero Romão Batista, inicialmente para apenas para
rezar uma missa pedida por dois ilustres locais. O jovem de 28 anos ansiava ir
para Fortaleza trabalhar na diocese ou continuar seus estudos, afinal só muito
recentemente, em 1854 havia sido criada a diocese do Ceará e ainda estava no
cargo de bispo aquele que foi o primeiro a ocupa-lo, Dom Luís, era, então, a
oportunidade para padres jovens da antes esquecida província do Ceará ascenderem
na hierarquia da igreja. O destino de Cícero, porém, não viria a ser tão
harmonioso.
Pela
noite, Padre Cícero acorda de um sonho, onde afirma ter visto Jesus Cristo a
pedir que cuidasse dos pobres da região. Crente (Ou não) de seu devaneio
noturno, Cícero decide ficar em Tabuleiro Grande, onde exerceu com bastante
dedicação a batina, praticando a caridade, visitando os idosos e orando missas
com regularidade. Tal veemência em suas atividades, associadas ao prestígio da
Igreja Católica enquanto parte do Estado Imperial e escravista brasileiro lhe
renderam influência local, que usou para cercear e atacar as manifestações
culturais do povo negro do distrito, proibindo o samba, considerado como dança
sensual de “escravos”, como ressalta Ralph Della Cava (1976, p. 42).
As
coisas seguiam tranquilas até que, em 1º de março de 1889, a beata Maria de
Araújo, uma das várias mulheres solteiras que se dedicaram a uma vida de “esposas
de Cristo”, verteu, segundo dizem, uma hóstia em sangue. Tal evento já ocorria
e viria a se repetir pelos dias seguintes. Não cabe a História afirmar se
milagres existem ou não, mas sim analisar o contexto no qual nasce e o fenômeno
social que resulta do evento. Um movimento se inicia, três meses depois ocorre
a primeira romaria, vinda do Crato, trazida por Monsenhor Monteiro, três mil
pessoas ocuparam o pequeno vilarejo, crentes de que o sangue vertido era o
sangue do Messias.
A
informação chega atrasada ao segundo bispo do Ceará, Dom Joaquim, que fica
sabendo apenas oito meses depois do suposto milagre e de um movimento de
catolicismo popular que sai de seu controle. Em um momento de perca do papel da
Igreja Católica enquanto religião oficial, havia um esforço para romanizar as
manifestações católicas da população, que misturavam, em uma dinâmica
circularidade cultural, misticismo e religiões de matriz afro com o catolicismo
apostólico, construindo superstições e tradições particulares (Como é o caso
das renovações e das novenas, por exemplo). Frustrado nesse inglório trabalho
por seus próprios subordinados, entre eles o Padre Cícero, o bispo reage com
todo rigor, ordenando imediatamente que os párocos não se manifestem a respeito
do suposto milagre e submetendo a beata, maior vítima da polêmica, a diversos
testes.
Tudo
terminou com Maria de Araújo enclausurada e desacreditada, Padre Cícero perdeu
seus privilégios de rezar missas e ouvir confissões após diversas tentativas de
se explicar para a diocese e para o vaticano, porém foi exaltado pelos milhares
de romeiros que agora ascendiam e tinha o favor dos comerciantes que
prosperavam com esses “turistas”, o suposto milagre foi também, pelo seu
crescente poder e por ser branco e homem, atribuído ao padre e não a beata, que
morreu esquecida em 1914, tendo seu corpo desaparecido nos anos 1950 e nunca
mais encontrado.
Nos
anos que se seguiram, Cícero Romão Batista percebeu sua influência entre os
seus irmãos padres diminuindo e todos seus privilégios eclesiásticos se foram,
porém, como dito acima, os comerciantes e a nova elite da vila agora chamada de
Juazeiro do Norte lhe eram muito gratos e, por razões de sobrevivência, o padre
se alia a eles; mais do que isso: Se torna um deles, defendendo seus
interesses. Contribui com os latifundiários, naturalizando sua dominação
econômica ao mandar romeiros pobres e desempregados para suas fazendas como
mão-de-obra barata, assim como enche as oficinas que prosperavam na região com
trabalhadores desesperados por um meio de vida. Sem o Padre Cícero famílias
influentes em Juazeiro do Norte até nossos dias, como a Bezerra, não seriam o
que foram e são, alimentadas por camponeses colocados em regime de semiescravidão
que barateavam e muito seus custos de produção.
Não
demorou menos de vinte anos para que Juazeiro do Norte tivesse uma pujante
economia baseada no comércio religioso que possibilitava, também, trabalhadores
em “busca da terra Santa” para tornarem-se camponeses nas terras dos coronéis.
As romarias, frutos da crença popular em um milagre supostamente manifestado
através da boca de uma mulher negra que se encontrava presa, fizeram com a maré
subisse os barcos de todos os ricos, gerando uma desigualdade social tremenda,
permitindo, segundo dados do Atlas Brasil, que Juazeiro do Norte tivesse, até
1991 uma taxa de mortalidade infantil de 80,6 por mil crianças de até 5 anos de
idade e um IDH pífio de 0, 419, realidade que só viria a mudar em meados dos
anos 2000.
Juazeiro
do Norte tornou-se maior do que a cidade da qual era distrito, Crato, e
tornou-se independente em 1911, sendo o Padre Cícero, vejam só, seu primeiro
prefeito. Três anos após a independência os pobres tornaram-se, mais uma vez,
buchas de canhão para os interesses das elites. O pároco emérito, associado às
elites agrárias do Cariri e do Ceará e tendo, para elas, grande valor,
filiou-se ao PRC (Partido Republicano Conservador), partido do governador do
Ceará, Nogueira Accioly, membro e representante das elites coronelistas e
tradicionais do Estado.
Havia
uma contradição entre a nova burguesia liberal da belle époque cuja riqueza
advinha do comércio e a burguesia agrária e rural coronelista do estado, este
segundo grupo havia conseguido manter no poder por mais de uma década Nogueira
Accioly e transformava o PRC no Partido dominante da política estadual, a
oposição cada vez mais fortalecida, porém, consegue, em 1912, dar um golpe e
colocar no poder o liberal Franco Rabelo.
Franco
Rabelo, então, cuida de consolidar seu poder e consegue um grande inimigo, o
Padre Cícero e seu aliado, o político conservador Floro Bartolomeu. O novo governador
chega até mesmo a enviar tropas para as proximidades de Juazeiro,
estacionando-as em Barbalha, para garantir que a nova ordem, das elites
comerciais, fosse estabelecida e mantida em todo o Ceará. A isso Padre Cícero
reage, junto aos coronéis e ao “Dr. Floro”, aproveita-se da movimentação das
tropas para convencer romeiros de todo o Nordeste que a “Jerusalém do Sertão”,
Juazeiro do Norte, estava ameaçada pelas tropas mundanas. Romeiros, policiais
da cidade e jagunços dos coronéis formam um exército para defender a autoridade
de seus exploradores tradicionais, os latifundiários, contra um outro modelo de
exploração (Mesmo que mais progressista), convencidos de que lutavam por uma
causa sagrada. É o mais cru exemplo do uso da religião usada como ideologia e
forma de reprodução, como havia pensado Marx e como pensaria Lukács anos
depois.
O
evento ficou conhecido como sedição do Juazeiro, em 1914 milhares de fiéis do
Padre Cícero cavaram uma trincheiro em volta da cidade usando panelas e algumas
pás, e venceram as tropas estaduais usando armas de fogo, facões, foices e
enxadas. Atitude heroica, a incrível força popular usada para a permanência da
exploração do trabalho. Os romeiros perseguiram as tropas até Fortaleza e, lá,
foi destituído Franco Rabelo, sendo o poder devolvido ao PRC. As forças
conservadoras que haviam feito sua fortuna sobre o trabalho escravo no Império
estavam mais uma vez no poder, graças ao “Santo” popular.
O “maior
cearense do Século” tornou-se o que é até nossos dias mais por sua atuação
política do que por sua atuação paroquial. Diferente do que a música do Tim
Maia dá a entender, Padre Cícero tornou-se grande proprietário de terras,
fazendo jus ao título de “coronel de batina”. Associou-se a ordem Salesiana na esperança
de, ainda em vida, ver seus direitos de padre devolvidos, fazendo desta ordem,
após sua morte, um grupo poderosíssimo no Cariri, dono de terras, hotéis e
escolas, além, claro, da contribuição dos romeiros para uma igreja cuja
construção nunca termina.
A
atuação diligente do “Santo popular” em defesa do que havia de mais reacionário
na política nacional da primeira república não termina em 1914, adentrou-se no
século de crise do modelo de poder da republica velha. Na década das revoltas
tenentistas o Padre Cícero não hesitou em permanecer ao lado das elites
conservadoras, não das massas populares que o amavam, mas da reação. Isso fica
claro quando, em 1926, a coluna Prestes, um grupo fruto da contradição e do
desgaste do modelo da república oligárquica, encabeçado pelo futuro secretário
geral do Partido Comunista do Brasil, Carlos Prestes, passava pelo Nordeste,
enfrentando coronéis e bastiões e sustentáculos do modelo de poder burguês
vigente.
Temendo
que a coluna viesse para Juazeiro e dessem cabo de si e de seus comparsas,
Floro Bartolomeu recruta jagunços e lhes farda, chamando a tropa de “batalhão
patriótico”. Dai surge a famosa história do contato de Padre Cícero com
Lampião, que foi contatado por Floro para comandar o batalhão contra os
rebeldes, prometendo ao famoso cangaceiro a patente de capitão. Lampião chega à
cidade, porém Floro não se encontrava, fazendo com que o Padre ficasse
responsável pela conversa. Lampião saiu da cidade com uma patente falsa e armas
novas e modernas, porém sem enfrentar a coluna Prestes que (Infelizmente) não
passou por Juazeiro.
Padre
Cícero é uma figura polêmica, nascido em um dia como esse, 176 anos atrás,
tornou-se santo do catolicismo popular, porém sua atuação política o escancara
como reacionário, defensor do latifúndio e inimigo das classes camponesas e
trabalhadoras. A História é, porém, dialética e movida pelas contradições da
vida material, esta figura religiosa, obscurantista e reacionária foi
responsável pelo desenvolvimento da vida comercial juazeirense através das
romarias, forma econômica que existiu de forma híbrida com as mais arcaicas
formas de controle da terra, porém, com o tempo, o comércio solapou o
latifúndio, transformando Juazeiro no maior centro financeiro e comercial da
região. Não demorou para que, anos após a morte do Padre em 1934, os
comerciantes passassem a dar as cartas na política local. Padre Cícero impulsionou
as forças econômicas modernizadoras que passou a vida a enfrentar. O capitalismo
é feito através de contradições, as romarias e o fenômeno religioso de Juazeiro
do Norte são exemplos disso.
Que
nesse 24 de março de 2020 nós, defensores do progressismo e do socialismo,
repudiemos com uma só voz, essa figura reacionária e defensora do atraso que
foi Cícero Romão Batista.
BIBLIOGRAFIA.
ATLAS DO DESENVOLVIMENTO
HUMANO NO BRASIL. Juazeiro do Norte, disponível em: http://www.atlasbrasil.org.br/2013/pt/perfil_m/juazeiro-do-norte_ce,
acesso em 24/03/2020.
DELLA CAVA, Ralph. Milagre em Juazeiro. 2ª ed. Paz &
Terra, Rio de Janeiro, 1976.
ENGELS, Friedrich. Anti-Duhring. 1º ed. Boitempo Editorial,
São Paulo, 2015.
PEREIRA, Cláudio Smaley
Soares. DA “CIDADE DO PADRE CÍCERO” A
“CIDADE DO CAPITAL”: A MORFOLOGIA E A CENTRALIDADE URBANAEMJUAZEIRO DO NORTE/CE,
disponível em: http://www.cbg2014.agb.org.br/resources/anais/1/1403638206_ARQUIVO_DACIDADEDOPADRECICEROACIDADEDOCAPITAL-MORFOLOGIAECENTRALIDADE.pdf,
acesso em 24/03/2020.
LUKÁCS, Gyorgy. Prolegômenos para uma Ontologia do Ser
Social. 1ª ed. Boitempo Editorial, São Paulo, 2014.
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SUED
Nome artístico de Línik Sued Carvalho da Mota, é romancista, novelista, cronista e contista, tendo três livros publicados, também é graduada em História pela Universidade Regional do Cariri e constrói o Partido Unidade Popular pelo Socialismo. Militante comunista, acredita no radicalismo das lutas e no estudo profundo de política, sociologia, História e economia como essenciais para uma militância útil.
Escreve ao Ad Substantiam semanalmente às segundas-feiras.
Contato: lscarvalho160@gmail.com
Nome artístico de Línik Sued Carvalho da Mota, é romancista, novelista, cronista e contista, tendo três livros publicados, também é graduada em História pela Universidade Regional do Cariri e constrói o Partido Unidade Popular pelo Socialismo. Militante comunista, acredita no radicalismo das lutas e no estudo profundo de política, sociologia, História e economia como essenciais para uma militância útil.
Escreve ao Ad Substantiam semanalmente às segundas-feiras.
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