Democracia: se transforma depressa demais

Hoje, pela milésima vez, escuto João Gilberto entoando os lindos versos que dão nome ao seu segundo disco "o amor, o sorriso e a flor", versos que denotam estruturas essenciais e frugais, que "se transformam depressa demais", que duram o tempo de nos conquistar os olhos e o coração e desaparecem a tempo de nos enterrar em profundas saudades e melancolia.
Cada vez que ouço "Meditação", eu desapareço entre as notas do violão e a voz divinal do intérprete sagrado, encontrando-me em um Rio, em um Brasil que não mais existem. Vou a uma pátria de ideias, de homens combativos, apaixonados pelo que defendem, pelo que dizem. Diferentemente de um mundo cheio de ódio contra as ideias e sem nenhuma paixão admirável pelas mentiras que conta.
Vivemos em um Brasil sem gênios, desde que João se calou, órfão das suas divindades laicas, enterrado em crenças, muitas vezes, mesquinhas e desarrazoadas. Vazias do que fez e faz ainda as melhores canções: a paixão, o encantamento.
A internet se domina por seitas autofágicas que apenas suportam o pensamento único, se é que se pode chamar a repetição de frases feitas de pensamento. Não há mais a paixão pela mudança, pelo aprimoramento, pelo crescimento. Cadê a philia pelo conhecimento?  Onde está a abertura e a racionalidade necessárias aos debates?  E a vergonha, essencial, de não se dizer asneiras sobre o que se desconhece?
Esse país sem paixão resulta em tantas coisas ignóbeis, uma delas: a nova lista de livros proibidos do governo de Rondônia, regido por um assecla do presidente. Mais uma lista perversa para grande história mundial, da qual a paixão e a razão renegaram a distância por longos períodos. Censuraram Machado de Assis! Cony! Gullar! Nelson Rodrigues (ironia do destino)! Os Rubens! Até o Kafka foi vítima d'O Processo.
Haja ausência de pensamento racional e ódio cego. Mas talvez a censura não tenha nada a ver com tudo isso, só tenha acontecido pois esses livros têm demasiadas coisas escritas. Não sei. Só sei que agora entendo a reclusão que João viveu seus últimos dias, até que sua voz se calou para sempre. Por favor: "um cantinho, um violão, esse amor, uma canção"... até quando os brasileiros voltem a ter amor pelas ideias e se possa estabelecer debates saudáveis e frutíferos.
Voltemos a João Gilberto
https://www.youtube.com/watch?v=MvAaI9ufLbg

Comentários

Postagens mais visitadas