Afasta de mim esse Coringa...




Niilismo, a crença de que os valores são infundados e que não há qualquer sentido na existência humana, o primeiro a usar o termo teria sido Ivan Turgueniev em seu clássico Pais e filhos (1862), os comportamentos que constroem o conceito são personificados por seu protagonista Bazárov, um aprendiz de médico cético, cínico, que contempla o “caos” da miséria humana e zomba das tentativas constantes de encontrar o sentido na existência. Com um otimismo característico do “século das luzes”, há um elemento redentor em seu final, o niilista Bazaróv apaixona-se e começa a entrar em contradição consigo mesmo, no fim trágico, apenas seus pais, que haviam se devotado para pagar os estudos do filho, visitam seu túmulo.  A história do niilista serviu para reforçar a “virtude” das tradições.
O final redentor, de crítica ao niilismo, que coloca o amor fraterno como aquilo que dá ordem ao caos que encontramos em pais e filhos, porém, vai se tornando mais “irrealista”, “brega” e “cafona” no cínico século XXI, época do tecnicismo, em que “não se apegar” é uma virtude e o individualismo é incentivado.
O filme Coringa (2019), de Todd Phillips, foi realizado mais de cento e cinquenta anos depois de Pais e Filhos e traz uma abordagem bem diferente do niilismo, mais próxima de nossos dias duros de tecnicismo e neoliberalismo, em que até convenções burguesas como “família tradicional” vão se diluindo, perdendo o caráter imprescindível que antes possuíam. A película nos conta a história de Arthur Fleck, um homem isolado, com sérios problemas de sociabilidade resultados de uma infância traumática e de anos em instituições psiquiátricas que trabalha como palhaço e sonha em ser um comediante de stand up. Entretanto as coisas começam a dar errado para nosso “herói” após um incidente em um hospital. Demitido, sem perspectiva e sendo informado que o programa de acompanhamento psicológico que o atende será cortado, vê diante de si se construindo aquilo que sua contraparte original (E insana) dos quadrinhos vive a dizer: “Basta um dia muito ruim para enlouquecer um homem” ou segundo a versão de The Dark Knight: “Para todo mundo enlouquecer, basta um empurrãozinho”.
No fim de um dia infernal, Arthur se vê diante de três playboys em um metrô e, em um confronto provocado por estes, os mata com uma arma, com tons de crueldade. Seguido a isso, dança no banheiro, sentindo que “agora existe”, como viria a dizer para sua psicóloga. A partir dai o puteiro está montado. As notícias saem na televisão e se revela que os três eram yuppies que trabalhavam nas Empresas Wayne (Sim, aqueles Wayne) e há uma grande comoção, incomodando as pessoas que viviam na penúria de uma Gotham em crise sem que isso chamasse a atenção da mídia. Explode então o movimento “Kill The Rich” e é ai que o filme começa a ficar problemático.
Os revoltosos do filme tornam-se uma verdadeira horda furiosa e desordeira, que espalha um caos incontrolável pela cidade. O controle, o “sentido” dado pelas autoridades opressoras cai por terra e é como se os pobres de Gotham revelassem, através da revolta, sua natureza “caótica, louca e impressionável” que, afinal, estava sendo contida. Nas cenas em que vemos os protestos há o caos desordenado, pessoas aleatórias sendo agredidas e nenhum foco, em suma, vemos aquilo que a burguesia sempre representou como sendo um protesto popular.
No fim do filme, o Coringa é resgatado pelos manifestantes e é alçado a posição de ícone por eles, isso após realizar um atentado de vingança pessoal contra o comediante representado por Robert de Niro. Então é assim que a DC/Warner vê protestos populares? Não me entendam mal, o filme deixa bem claro que Arthur Fleck estava bastante desinteressado na causa “política” de tudo aquilo, por vezes apenas se aproveita da situação para sua vingança pessoal contra aqueles que, segundo ele, o atacaram pessoalmente, o problema está em como a multidão furiosa percebe isso.  A produção faz um retrato comovente e interessante da marginalização sofrida por aqueles que são considerados improdutivos para o Capital (Pessoas com problemas psicossociais), porém pinta um quadro preconceituoso de movimentos sociais, mostrando-os como cegamente violentos, infantis (Constantemente a procura de heróis e ícones) e niilistas, e portando um niilismo que é reafirmado pela cena final, em que o protagonista dança sobre um viatura sob o aplauso dos “descerebrados” sem orientação (Na visão da película).
Mas e ai, afinal, o filme do Coringa porta uma mensagem revolucionária ou não? Não, de forma alguma, todavia, antes de explicar o motivo da negativa, gostaria de dizer o seguinte: Mesmo que tivesse tal mensagem de revolução, não deveríamos reivindica-la por motivos de estratégia. Imaginem vocês, reivindicarmos uma simbologia assim tão complicada, estaríamos dando de bandeja para os conservadores o seguinte argumento: “Olhem ai, a esquerda idolatrando psicopatas assassinos.”. Como isso seria feito? Bem, bastaria dispensar a distinção original/adaptação, pegar um exemplar de a “Piada Mortal” de Alan Moore, mostrar a página em que o Coringa deixa Bárbara Gordon paraplégica, tira suas roupas, fotografa e (Alguns dizem) a violenta e dizer “Olhem, é isso que a esquerda está defendendo.”. Simples e efetivo tiro no pé dos esquerdistas excitados com um belo filme.
E a mensagem revolucionária? Não tem? Afinal, o filme mostra Thomas Wayne como um “pau no cu” e todos os ricos são egoístas... Como não tem mensagem revolucionária? Bem, Coringa está sendo feito em uma época que o neoliberalismo está em crise, até mesmo o Fundo Monetário Internacional lançou um artigo, em 2016, questionando se o neoliberalismo não seria “superestimado” (Podem conferir aqui: https://www.imf.org/external/pubs/ft/fandd/2016/06/ostry.htm) assim como, recentemente, Marc Benioff, um bilionário fundador da Salesforce afirmou que o “capitalismo como conhecemos está morto” (https://neofeed.com.br/blog/home/o-capitalismo-como-conhecemos-esta-morto-diz-bilionario-que-fundou-salesforce/), até mesmo Luciano Huck afirmou que o “liberalismo e o marxismo falharam” (https://exame.abril.com.br/brasil/o-marxismo-nao-deu-certo-e-liberalismo-puro-tambem-nao-diz-huck/). Vejam bem, alguns burgueses estão percebendo que a desigualdade cada vez mais abissal fruto do neoliberalismo e a crise de 2008 que já se estende por onze anos estão levando a levantes populares ao redor do mundo que podem, em última instância, levar a um novo ciclo de revoluções socialistas populares que o ocidente acreditou ter enterrado. Nesse sentido Coringa funciona como um alerta vermelho para a própria burguesia (Lembremos que o filme é da bilionária Warner), que já começa a se articular por mudanças para salvar o sistema capitalista: “Ou mudamos o modelo de exploração e expandimos as medidas compensatórias ou as ruas serão tomadas por “hordas bárbaras.”. Isso já aconteceu antes, lembram do Keynesianismo e da socialdemocracia europeia como reação a Revolução soviética?
O Thomas Wayne do filme funciona como um arquétipo do neoliberal moribundo que parte da burguesia está querendo começar a jogar para debaixo de seu tapete, enquanto os manifestantes são representados como feras niilistas sedentas por violência e terror que poderão “matar os ricos” caso estes não atendam as suas necessidades. O filme é, fundamentalmente, reformista, pressupõe que os trabalhadores devem esperar algo dos ricos e que estes devem ser mais “éticos”. Wayne não é “mal” por ser burguês, mas por não ser decente, seu papel social de explorador da força de trabalho não é, em nenhum momento, questionado, apenas seu caráter individual.
Não há motivo algum para a esquerda radical estar usando essa “maquiagem”, por trás da “bela dança do Coringa” há não um chamado para os trabalhadores, mas um sinal vermelho para a burguesia emitido pela própria burguesia, tudo isso manifestado pela forma como o filme vê os movimentos sociais, a saber, como cegos e sem orientação, algo que não somos. A vida faz sentido fora da dominação.

Querem uma mensagem revolucionária? Vejam Bacurau.




SUED



Nome artístico de Línik Sued Carvalho da Mota, é romancista, novelista, cronista e contista, tendo três livros publicados, também é graduada em História pela Universidade Regional do Cariri e constrói o Partido Unidade Popular pelo Socialismo. Militante comunista, acredita no radicalismo das lutas e no estudo profundo de política, sociologia, História e economia como essenciais para uma militância útil.
Escreve ao Ad Substantiam semanalmente às segundas-feiras.
Contato: lscarvalho160@gmail.com





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