Crítica ao materialismo vulgar em relação à transgeneridade (Uma primeira provocação)
Vivemos
em um dos países que mais matam transgêneros, transexuais e travestis no mundo,
em 201 foram 127 casos, o que implica em três por dia, assim sendo é inegável a
opressão brutal que este grupo, cuja expectativa de vida no Brasil é de 25
anos, sofre. Logo é vital que Partidos da Esquerda marxista pensem essa questão
dentro do Materialismo Histórico Dialético, porém, entre os marxistas essa
questão não recebeu a devida atenção e, em alguns casos, propositalmente.
Alguns marxistas vulgares, que tendem mais ao positivismo, defendem que
transgeneridade é “idealismo” por ser baseada em como a pessoa “sente” o gênero
(Como se fosse apenas isso). Bem, tais indivíduos dispensam, completamente, a
questão da subjetividade e da sociabilidade no materialismo histórico dialético
e não entendem, sequer, qual o ponto do “materialismo” que é histórico e
dialético. Este texto destina-se a responder tais vulgaridades e tentar mostrar
que a condição das pessoas transgênero é sim perceptível na metodologia
analítica do materialismo histórico dialético a partir da pergunta: O que é
esse material deste materialismo e por que é histórico e dialético? E faremos
isso sempre reportando a questão central.
Nos
remetamos a forma como Marx define o núcleo duro e as prioridades de sua metodologia
de análise:
Totalmente
ao contrário da filosofia alemã, que desce do céu à Terra, aqui se eleva da
Terra ao céu. Quer dizer, não se parte daquilo que os homens. Quer dizer, não
se parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou representam, tampouco de
homens pensados, imaginados e representados para, a partir daí, chegar aos
homens de carne e osso; parte-se dos homens realmente ativos e, a partir de seu
processo de vida real, expõe-se também o desenvolvimento dos reflexos
ideológicos e dos ecos do processo de vida. (Marx, Engels, 2008, p. 94).
Podemos
perceber na citação de Marx que o que, essencialmente, não cabe em sua forma de
análise é a percepção de que “a ideia” tem potencial criador autônomo, que ela
tem pernas próprias. O principal, a condição primordial de toda análise
materialista histórico dialética é a percepção de que todo o subjetivo, todo o
elemento ideológico, parte das relações cotidianas reais, da materialidade das
relações sociais, que condicionam o comportamento humano, mas não de forma
determinista, pois “as circunstâncias fazem os homens, assim como os homens
fazem as circunstâncias.” (MARX, ENGELS, 2008, p. 43). Assim, apesar da
liberdade criadora da humanidade, manifestada principalmente através do
trabalho, ele está preso a determinadas condições das quais não pode fugir.
Esse é o ditame básico do materialismo histórico dialético e até isso alguns
ditos marxistas, até em meio a movimentos marxista-leninistas são incapazes de
entender, esses camaradas confusos que parecem mais positivistas incapazes de
entender uma analogia ou a mais simples piada precisam ler Marx com mais
atenção, quando o autor fala que o “primeiro fato a constatar é, pois, a
organização corporal desses indivíduos e, por meio dela, sua relação dada com o
restante da natureza.” (MARX, ENGELS, 2008, p. 87), ele está afirmando,
explicitamente que esta é a “primeira coisa” a ser em conta e não algo em si
mesmo, este é o ponto de partida no sentido de que os seres humanos “(...)
começam a se distinguir dos animais tão logo começam a produzir seus meios de
vida (...)” (MARX, ENGELS, 2008, p. 87), assim, nesse momento, o filósofo está
afirmando o princípio ontológico do ser humano, o trabalho como prática humana
de transformação da natureza e não que a “matéria” se basta. Ora, é absurdo
acreditar que Karl Marx pare na aparência das coisas, ele jamais fez isso,
nenhum pensador dialético que se respeite o faria.
Lenin
(2018, p. 199) anota que no materialismo dialético “A consciência humana, a
ciência, reflete a essência, a substância da natureza, mas ao mesmo tempo essa
consciência é exterior em relação à natureza (Não coincidindo imediata nem
simplesmente com ela).”, ou seja, simplificando, a ciência, apesar de reflexo
de nossa consciência abstrata do mundo que nos rodeia, da natureza da qual
somos formados, não coincide necessariamente com algo entendido como “natureza
em si”, pois, estando tudo em movimento e sendo o ser humano capaz de
transformar a si mesmo e o seu meio, não se pode permanecer no “empirismo” puro,
mas perceber os elementos dialéticos, as formas de apropriação, os sentidos
construídos historicamente por nós em nosso cotidiano a partir da materialidade
das coisas e das relações sociais mais elementares. Também para Lenin, um ótimo
leitor de Marx, a “materialidade” não é o fim último, mas o início, a partir de
onde as coisas sobem, como reafirma ao dizer que:
“O
ser (Objeto, aparecimento, etc.) isolado é (apenas) um lado da ideia (Da
verdade). A verdade precisa ainda de outros lados da realidade, que também
parecem apenas independentes e isolados (Particularmente subsistentes por si).
Apenas em seu conjunto (Zusammen) e em sua relação (Beziehung) a verdade se
realiza.” (LENIN, 2018, P. 207)
Continuando
meu raciocínio – me esforçando para não chamar de “idiotas” e “maus leitores”
os que confundem empirismo com materialismo histórico dialético – nunca é
demais reafirmar que a própria situação da ‘mulher”, como exemplo, a imagem
sobre ela é socialmente construída, por exemplo, não sendo a mulher uma
categoria “apenas biológica”, mas, pelo contrário, seu papel socialmente
constituído, as narrativas sobre ela criadas partem do material, porém essa é
apenas a primeira coisa a se levar em conta, o ponto de onde a questão se
origina e se eleva, assumindo novas funções sociais e se tornando relativamente
independente, nem que apenas do ponto de vista da percepção, a coisa
espalha-se, eleva-se, é mais e mais abstraída apesar de umbilicalmente ligada a
materialidade das coisas, como escreve Lukács (2014, p. 298): “Com efeito, só
em comunidades humanas, mantidas em coesão pelo trabalho comum, pela divisão do
trabalho e por suas consequências, é que a mudez do gênero própria da natureza
começa a recuar.”. Assim, analisar a questão do ser social consiste em levar em
conta o afastamento da barreira natural proporcionada pelo desenvolvimento do
trabalho e da linguagem, chegando até as nossas formas mais complexas de relacionamento,
como lembra Engels (p. 187): “A forma de família que corresponde à civilização
e vence definitivamente com ela é a monogamia, a supremacia do homem sobre a
mulher, e a família individual como unidade econômica da sociedade.”, família,
monogamia e individualidade são formas socialmente criadas de controle sobre impulsos
naturais e instintivos, são maneiras de interagir com a realidade e ser
influenciado por ela, que não apenas permite a reprodução de um sistema social
e econômico como o conhecemos, como também cria papeis para a mulher e para o
homem e, de certa forma, cria o “homem” e a “mulher” sociais, distintos do
macho e da fêmea das cavernas, destaquemos mais uma vez Lukács ( 2017, p. 279):
Inclusive
é característico desse desenvolvimento que, quanto mais as comunidades humanas
adquirem um caráter social, quanto mais bem delineado esse se torna, tanto
maior é o número de casos em que o homem pode figurar também em tais singularidades
abstratas.
Logo,
já está mais do que claro que o hábitos de alguns autoproclamados marxistas de
criticar transgêneros, transexuais e as travestis (Grupo mais oprimido,
marginalizado e excluído do meio LGBT) usando como argumento o fato de “serem
fisicamente isso e se dizerem aquilo, logo são idealistas” é completamente
furado, o próprio Karl Marx (2013, p. 91), no prefácio do livro I sua obra
prima O Capital, sobre o idealismo Hegeliano diz:
Critiquei
o lado mistificador da dialética hegeliana há quase trinta anos, quando ela
ainda estava na moda. Mas quando eu elaborava o primeiro volume de O Capital,
os enfadonhos, presunçosos e medíocres epígonos que hoje pontificam na Alemanha
culta, acharam-se no direito de tratar Hegel como o bom Moses Mendelssohn
tratava Espinosa na época de Lessing: como um “cachorro morto”. Por esta razão,
declarei-me publicamente como discípulo daquele grande pensador e, no capítulo
sobre teoria do valor, cheguei até a coquetear aqui e ali com seus moldes
peculiares de expressão. A mistificação que a dialética sofre nas mãos de Hegel
não impede em absoluto que ele tenha sido o primeiro a expor, de modo amplo e
consciente, suas formas gerais de movimento. Nele, ela se encontra de cabeça
para baixo. É preciso desvirá-la, a fim de descobrir o cerne racional dentro do
invólucro místico.
Marx
discorda do direcionamento de Hegel, que parte do abstrato ao material, do
subjetivo ao objetivo, acreditando que o ideal, o espiritual que cria e move o
material e não da forma geral desta dialética, para o fundador do materialismo
histórico dialético o subjetivo, espiritual e ideal surge do material em
constante movimento histórico. Assim, é completamente errôneo negar o ideal e
subjetivo, Marx não o fez, pelo contrário, os deu real importância,
explicando-os historicamente, se Hegel os descaracterizava, tornava-os obscuros
e místicos, Marx os devolveu a sua função real e a seu movimento histórico em
suas geniais afirmações. Homem e mulher são papeis sociais que surgem
historicamente do “macho” e “fêmea”, mas que se desenvolveram na sociedade de
forma não mais dependente destes conceitos primordiais, embora ainda a eles
ligados, logo é incorreto condenar como idealismo ou “degeneração burguesa”
(Este odioso termo) a transgeneridade, uma forma de se relacionar com os papeis
sociais de gênero decorrentes do nosso desenvolvimento sociohistórico que deve
ser entendida dialética e cientificamente. Que os marxistas lembrem do aviso de
Lukács (2015, p.36) aos mencheviques com suas tendências a “converter o
marxismo em sociologia burguesa, com suas leis formais, supra-históricas, que
exclui toda “atividade humana.”. “Mulher” e “Homem” tem sim origem na
materialidade biológica, mas este é apenas o ponto de partida, são também
ideais históricos e sociais, legitimadores de determinados papeis.
Transgeneridade cabe na análise materialista histórica e é um crime, repito, UM
CRIME, negar-se a analisar a condição de tais pessoas como um fenômeno real,
menosprezando-as como “idealistas” (Em uma análise bastante anti-materialista)
ou vítimas da “degeneração burguesa”.
Estou
dizendo que não existem abordagens idealistas da questão? Não. Estou dizendo
que a sociedade burguesa renega tais pessoas ao papel de “objetos sexuais”,
obrigando-as a, constantemente, entrarem em um papel erotizado? Mais uma vez
não! Essas são outras perguntas, a serem respondidas em outro momento, mas a questão
da transgeneridade é constantemente confundida com suas implicações na
realidade. Uma mulher trans não deseja ser prostituta, não deseja
sexualizar-se, mas é vítima de como a sociedade burguesa patriarcal (Termo
usado por Engels) entende a própria mulher, como mero “objeto de reprodução” e
são totalmente excluídas de qualquer local político e até de qualquer
possibilidade de subsistência. A ideologia dominante sexualiza pessoas trans,
pessoas trans não são “apriori” erotizadas, pelo contrário, desejam ter o mundo
em suas mãos e quebrar as correntes de tal condição política, porém os marxistas vulgares
leitores de panfletos negaram e continuam negando a possibilidade de tais
pessoas estarem, como são, lutando por uma nova sociedade no socialismo,
tornando conceitos que o materialismo histórico dialético percebeu na
historicidade em supra históricos. Falando francamente, idealistas são os que
negam a transgeneridade usando argumentos positivistas.
Estou
dizendo aqui que Karl Marx defendia trans e outros LGBT’s em sua época? Estaria
sendo eu anacrônica? Alguns analfabetos funcionais poderiam afirmar isso, para
estes poderia se recomendar aulas de leitura, pois “Fábio e o papagaio” é a
única coisa que conseguem entender, na verdade, esses refutadores chulos. O que
está em questão aqui é se as novas questões que saem do subterrâneo à medida
que avança o modo de produção capitalista cabem ou não no materialismo
histórico dialético e que definir vulgarmente algo como “degeneração burguesa”
é algo a ser completamente abolido de nossas falas e textos, pois isso além de
anticientífico é desrespeitoso, estamos falando de uma população diariamente
oprimida com a maior brutalidade. Parem de se esconder atrás de termos
inválidos que nada explicam, quem não entende dialética não pode se reivindicar
marxista.
Voltarei
no futuro a tratar desta questão com mais detalhe, focando-me, inclusive nos
aspectos físicos da transgeneridade, procurando o que de mais moderno a ciência
biológica pensa a respeito para mostrar que a própria (assim chamada) ciência
burguesa está na frente de muitos leitores de panfleto que se declaram
marxistas.
Bibliografia:
Cunha,
Thaís. Brasil lidera ranking mundial de
assassinatos de transexuais. Disponível em <http://especiais.correiobraziliense.com.br/brasil-lidera-ranking-mundial-de-assassinatos-de-transexuais>
, último acesso em 19 de Janeiro de 2019.
Engels,
Friedrich. A Origem da Família, da
propriedade privada e do Estado. 1ª ed. Editora Escala, São Paulo, 2002.
LENIN,
Vládmir Ilitch. Cadernos Filosóficos.
1º ed., Boitempo Editorial, São Paulo 2018.
Lukács,
Gyorgy, Para uma Ontologia do ser social
II. 1ª ed., Boitempo Editorial, São Paulo, 2014.
Lukács,
Gyorgy. Reboquismo e Dialética. 2ª
ed., Boitempo Editorial, São Paulo, 2015.
MARX,
Karl; Engels, Friedrich. A Ideologia
Alemã. 1ª ed., Boitempo Editorial, São Paulo, 2008.
MARX,
Karl. O Capital Livro I: Processo de
produção do capital. 1ª ed,, Boitempo Editorial, São Paulo, 2013.
SUED
Nome artístico de Línik Sued Carvalho da Mota, é romancista, novelista, cronista e contista, tendo três livros publicados, também é graduada em História pela Universidade Regional do Cariri. Militante comunista, acredita no radicalismo das lutas e no estudo profundo de política, sociologia, História e economia como essenciais para uma militância útil.
Escreve ao Ad Substantiam semanalmente às segundas-feiras.
Contato: lscarvalho160@gmail.com
É preciso combater a LGBTQfobia nas frentes populares que são mascaradas por esta falsa demagogia anti pós-modernidade !
ResponderExcluirUm texto excelente! Parabéns!
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