Eurocêntrico é chamar o Marxismo de Eurocêntrico!
No
ano passado, durante as campanhas de Fernando Haddad no segundo turno contra
Jair Bolsonaro, fomos, para tentar impedir a eleição do fascista, obrigados e
obrigadas a forjar uma frente ampla. Vários movimentos de esquerda e
centro-esquerda uniram-se em panfletagens e comícios e foi em um destes, numa
certa sexta feira, que escutei algo que ficou na minha cabeça da parte de um
militante do movimento negro liberal:
“Eles
não tem medo de socialismo, mas da descolonialidade”
Isso
sendo dito em um palco por alguém quem se afirma de esquerda e recebendo
aplausos me preocupou e continua a preocupar, afinal a vitória dos Estados
Unidos da América na guerra fria resultou em uma domesticação de boa parte da
esquerda, que abandonou as pautas revolucionárias e passou a tentar achar seu
espaço dentro dos sistemas de governo burgueses, renegando seu passado e
contribuindo com a retórica neocolonial, fenômeno que o camarada Domenico
Losurdo, falecido no ano passado, chamava de “Autofagia”.
Enfim,
a fala do companheiro liberal, cujo nome e movimento manterei anônimos, está
completamente errada de todos os pontos de vista. Primeiro, a burguesia tem seu
poder pela força material resultante da propriedade privada dos meios de
produção, que lhes dá poder de definir, na prática, quem vive e quem morre e se
apropriar da mais-valia gerada pelo trabalho de milhões, uma opressão de classe
que possui suas complexidades e formas de dominação que servem para baratear
ainda mais a mão de obra e gerar separação entre os trabalhadores, como o
racismo e o sexismo (Sem os quais é impossível entender a luta de classes no
Brasil); Segundo, a burguesia, a partir de seu poder material constrói
aparelhos de hegemonia, que são propagadores da Ideologia que naturaliza tais
relações que são, na verdade, sociais e históricas (Dialética: Forma e conteúdo, a ideologia se propaga através,
também, de genocídio cultural, logo Conteúdo é a Ideologia burguesa, sua forma
é o genocídio cultural). Os burgueses não são, porém, figuras caricatas e
maquiavélicas que planejam isso friamente, são, como os trabalhadores,
reprodutoras do sistema e de estruturas anteriores a sua própria existência
enquanto pessoas. O que dá aos burgueses seu caráter de opressores não é sua
cor, gênero, sua boa ou má vontade, mas sim a estrutura e complexo de relações
sobre os quais se firma o seu poder. Logo, a fala do rapaz desloca a “descolonialidade”
de sua potencialidade prática e revolucionária para o campo do puro idealismo,
onde esta torna-se apenas um belo conceito, uma palavra de ordem a mais. “Descolonialidade”
só faz sentido e só é possível em uma perspectiva socialista (Sendo ela
marxista ou não, inclusive, embora eu, como marxista, vá sempre preferir e
defender essa forma).
A
afirmação feita no palanque pelo companheiro não é, porém, um fato isolado,
vemos certas tendências por parte de movimentos negros de afirmarem que o
marxismo é “eurocêntrico” e que não deve servir para a luta dos movimentos
sociais. Bem, afirmarei aqui que isso é pura HIPOCRISIA! É o eurocentrismo,
colonialidade, desses próprios movimentos que exportam pautas e idolatram divas
pop dos Estados Unidos da América que
os leva a afirmar tal coisa. Afirmar que o marxismo é eurocêntrico é não conhecer
a história das independências da Argélia, Burkina Faso, Moçambique, Cabo Verde,
da revolução Chinesa, Coreana ou mesmo conhecer os Panteras Negras, profundos
admirados de Mao Tsé-Tung. O pensamento Marxista é defensor da
práxis, do conhecimento que se constrói na luta, logo é perfeitamente adaptável
as mais diversas realidades onde o capitalismo oprima, mesmo em sua forma
colonial, como afirma o próprio Marx (2016):
A
hipocrisia profunda e a bárbarie inerente à civilização burguesa se difunde sem
véus diante de nossos olhos, passando da sua fornalha natal, onde ela assume
formas respeitáveis, às colônias onde ela assume suas formas sem véus.
O
imperialismo do Século XIX foi movido por interesses econômicos das classes
dominantes burguesas da Europa, que justificavam sua dominação através das
teses racistas de darwinismo social e “fardo do homem branco”, não foram tais
ideias que levaram a dominação e divisão da África e Ásia, são, pelo contrário,
consequências destas. O racismo é a ideologia da escravidão, justifica a
dominação europeia com interesses de expansão dos mercados. Não havia
estranhamento entre europeus e africanos antes? Sim, é natural que haja
estranhamento entre uma cultura e outra completamente diversa, porém, através
dos séculos, as classes dominantes deram forma a percepção do “estranho” com a
Ideologia para as outras classes de sua sociedade, na Idade Média o “outro” era
o “Pagão sem alma”, na Idade Contemporânea, porém, o “pagão” tornou-se “raça
inferior” por explicações pseudocientíficas. Mas não sem uma “Razão” que
beneficiasse os imperialistas. Assim, a “colonialidade”, a “imposição cultural”
são frutos, na Idade Moderna, do interesse da expansão dos mercados europeus e
norte-americanos, logo uma crítica da colonialismo é impossível sem o recorte
de classe e sem a crítica ao modelo de produção capitalista. Hobsbawm (1988, p.
386) coloca:
No
período que nos interessa, este era plenamente o caso de todas as áreas da
biologia que atingiam diretamente o homem social, e de todas as que podiam ser
vinculadas ao conceito de “evolução” e ao nome cada vez mais carregado de
conotações políticas de Charles Darwin. Ambos tinham um conteúdo ideológico
forte. Sob a forma de racismo, cujo papel central no século XIX nunca será
demais ressaltar, a biologia era essencial para uma ideologia burguesa
teoricamente igualitária, pois deslocava a culpa das evidentes desigualdades
das sociedades humanas para a natureza.”
E completa (p. 387):
(..)
as vinculações entre biologia e ideologia são, de fato, particularmente
evidentes no intercâmbio entre eugenia e a nova ciência da genética.
Como
coloca Hobsbawm, o racismo e as formas que este assume no Século XIX não são
causadoras da opressão imperialista burguesa, mas consequências desta, são
justificadoras ideológicas, cujo objetivo é naturalizar uma experiência
histórica. Assim, a crítica do próprio racismo, como o conhecemos hoje, também
não pode ser feita sem colocar o recorte de classe a crítica ao capital.
Assim,
não existe uma crítica descolonial sem um filtro socialista. Isso simplesmente
é impossível e historicamente errôneo, da mesma forma também é a afirmação de que
“marxismo é eurocêntrico”, ela mesma, eurocêntrica, pois só é verdadeira
olhando para o Norte de costas viradas para o Sul. Afirmar isso é silenciar
diversos movimentos anticoloniais em África e na Ásia que levantaram a bandeira
do materialismo Histórico Dialético contra a opressão imperialista que, como
vimos, é filha preferida do capitalismo.
Marxismo
surgiu sim, na Europa, mas ganhou outros contornos, desdobrou-se em novas
potencialidades com o poder criativo dos povos que com ele tinham contato. Isso
não pode ser dispensado, nem silenciado.
Não
sejamos hipócritas! Falo isso enquanto historiadora latina-americana!
Citados:
HOBSBAWM, Eric. A Era dos Impérios. 18º ed. Paz e
Terra, Rio de Janeiro, 2014.
MARX. Karl. Os Resultados Eventuais da Dominação
Britânica na India in < https://www.marxists.org/portugues/marx/1853/07/22.htm>
acesso em 01/07/2019.
SUED
Nome artístico de Línik Sued Carvalho da Mota, é romancista, novelista, cronista e contista, tendo três livros publicados, também é graduada em História pela Universidade Regional do Cariri e constrói o Partido Unidade Popular pelo Socialismo. Militante comunista, acredita no radicalismo das lutas e no estudo profundo de política, sociologia, História e economia como essenciais para uma militância útil.
Escreve ao Ad Substantiam semanalmente às segundas-feiras.
Contato: lscarvalho160@gmail.com
Nome artístico de Línik Sued Carvalho da Mota, é romancista, novelista, cronista e contista, tendo três livros publicados, também é graduada em História pela Universidade Regional do Cariri e constrói o Partido Unidade Popular pelo Socialismo. Militante comunista, acredita no radicalismo das lutas e no estudo profundo de política, sociologia, História e economia como essenciais para uma militância útil.
Escreve ao Ad Substantiam semanalmente às segundas-feiras.
Contato: lscarvalho160@gmail.com
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