"Pois sou mais feliz que você, pois estou gozando" - 120 dias em Sodoma e a paródia do Teatro de poder do Antigo Regime




Pensadores tão díspares quanto Karl Marx e Friedrich Nietzsche conseguem concordar com uma coisa: A moral dominante de uma época tem uma origem, é histórica, construída e, por isso, influenciada e influenciável. Marx e Engels, com sua típica abordagem classicista, conceitua na Ideologia Alemã: “As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a classe que é força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante.” (MARX, ENGELS, 2012, p. 47). Nietzsche, com uma abordagem um pouco diferente, mais generalizante – inclusive perigosamente mais generalizante – trata:
o sentimento fundamental, duradouro e soberano, de uma espécie inferior e “baixa” – aí está a origem da oposição entre “bom” e “mal” (O direito de dar nomes  vai tão longe que se pode considerar a própria origem da linguagem como exteriorização da autoridade dos dominadores; (...) (NIETZSCHE,  2013, p. 37)

A moral, a ética e o próprio comportamento são condicionados e condicionam, porém são direcionados, em ambos os autores, para legitimar estruturas de dominação, para criar espaços de movimentação para os membros das classes trabalhadoras, para Marx e das “espécies inferiores” para Nietzsche (Não preciso deixar claro que a abordagem de Marx é preferível para mim). Porém, essa condição condicionante não é necessariamente inflexível, como fala Carlo Ginzburg (2015, p. 20): “Assim como a língua, a cultura oferece ao indivíduo um horizonte de possibilidades – uma jaula invisível e flexível dentro da qual se exercita a liberdade condicionada a cada um.”. Até a reprodução desses elementos sociais é condicionado por essa prisão invisível e flexível: 

Toda sociedade reivindica certa quantidade de conhecimentos, habilidades, comportamentos etc. de seus membros, o conteúdo, o método, a duração etc, da educação no sentido mais estrito são as consequências das carências sociais dai surgidas. (LUKÁCS,  2013, p. 177).

Tudo que fazemos, escrevemos, pensamos e falamos está dentro de um horizonte intelectual cultural, histórico e geográfico ao qual nós, como seres sociais, estamos presos a nossa própria realidade sociohistórica, Lukács (2013, p. 214) reforça esse elemento: “O sinal pressupõe um mundo conhecido, senão não poderia tornar-se fio condutor da ação.”. Logo, somos seres que interpretamos as coisas a partir do contexto de onde surgimos, e entendemos as coisas a partir desse contexto. Mas, voltando a Ginzburg, essa condição condicionadora permite movimentos em seu interior, cria uma realidade cultural de interação, espaços e limites e, portanto, ideias de “ultrapassagem” desse limite que devem vir a ser reprimidas. A literatura  sátira, pornográfica e erótica são, historicamente, um desses espaços cerceados e cada momento histórico faz isso a sua forma, se levarmos Lukács e Ginzburg a sério. Donatien Alphonse François, o Marquês de Sade é um exemplo disso de diversas maneiras.
Nascido na França absolutista, vindo de família nobre, como o seu título nos deixa claro, Marquês de Sade chocou tanto a sociedade de seu tempo que hoje “sadismo” nomeia uma obsessão que ultrapassa os limites da própria ética existente, ele primeiro foi contra o decoro aristocrático, desconstruindo o teatro de poder da nobreza em sua própria personalidade a partir de suas obras, o que o levou a ser preso diversas vezes, inclusive na própria Bastilha. O crime de Sade foi, mais do que retratar “imoralidades”, atentar contra o teatro de poder da classe a qual pertencia socialmente.
Antes de avançarmos, precisamos definir o que seria esse “teatro de poder”  Edward P. Thompson  trabalha o termo na forma de “latência”:
Temos aqui um estilo hegemônico estudado e elaborado, um papel teatral que os poderosos aprendiam na infância e desempenhavam até a morte. E se falamos desse desempenho como teatro, não é para diminuir sua importância. Uma grande parte da política e da lei é sempre teatro. Uma vez estabelecido um sistema social, ele não precisa ser endossado diariamente por exibições de poder (embora pontuações ocasionais de força sejam feitas para definir os limites de tolerância do sistema). (THOMPSON, 2015, p. 48).

Thompson se aprofunda na definição:
A gentry e (em questões de relações sociais) as suas damas sabiam julgar com precisão os tipos de ostentação apropriados para cada posição social: o tipo de carruagem, a quantidade de lacaios, o tipo de mesa, até a reputação adequada de liberalidade. (Thomspon, 2015, p. 48)

Dessa forma temos uma sociedade aristocrática extremamente estratificada, onde os costumes eram baseados em status e julgados a partir dessa característica. Embora Thompson se refira a Inglaterra, Sade causou, na França um problema por desrespeitar o modelo de “poder”; é analisar superficialmente o autor vê-lo como um escritor pornográfico perseguido, com o Marquês o problema ia mais fundo, ele misturava as coisas, lançava a visão aristocrática estratificada no caos digno das classes “inferiores”, destruía as bases do “teatro de poder”. Em 120 dias em Sodoma vemos o autor levar ao extremo seu sarcasmo ácido.
Primeiro de tudo, o romance libertino tem como protagonistas aristocratas, com posições sociais estabelecidas e estáveis, que contavam com poder para fazer suas orgias, entre os quatro amigos que organizam os ciclos de devassidão que se dão no castelo que se ambienta a história, estão duques, bispos e entre outros, as histórias de devassidão que contam uns aos outros e que as servas contam para excitar seus patrões todas envolvem padres, frades e entre outros.
Segundo, o romance mostra os indivíduos aristocráticos lançando fora seus papeis no “teatro de poder’ e se misturando a indivíduos e indivíduos de classes inferiores (Dentro dessa visão de mundo) e mantendo relações sexuais com estes. Na visão aristocrática isso é, seguindo a lógica de Edward P. Thompson, inadmissível, o sujeito aristocrático não está apenas sendo “devasso”, está invertendo a própria lógica das coisas, naturalizadas, sacralizadas, escondidas de seu caráter histórico, no sentido de que a Ideologia dominante funciona rumando para a universalização e naturalização da hegemonia, como coloca Lukács (2013, p; 468): “por um lado, elas determinam todas as manifestações vitais de modo universal e, por isso, generalizante; por outro lado e simultaneamente, elas constituem sua singularidade especificamente social.”. Assim, Marquês de Sade desnuda, em seus livros e, especificamente, em 120 dias em Sodoma, o teatro de poder, baixa a cortina, revela a historicidade das relações sociais, desvela a realidade como, na verdade “elemento ideal” mais do que factual. Sade era alguém revelando como falsas as estruturas de dominação cultural de sua própria classe o que o torna duplamente ofensivo e perigoso, digno da Bastilha.
Terceiro, O ataque de Sade não era apenas no ato em si, seu romance é uma hipérbole que beira ao absurdo, a possibilidade real e o puro escracho se misturam em um mosaico humorístico caustico, das situações mais absurdas, dos membros mais inacreditavelmente grandes às seções de libertinagem mais inacreditavelmente duradouras, desejos sexuais tão ressaltados que beiram simplesmente ao ridículo, como apresenta certa passagem, protagonizada pelo bispo:

O bispo, inteiramente refeito de seus excessos e muito escandalizado desde as quatro horas da manhã por terem deixado dormir sozinho, tocara a sineta para que Julie e o fodedor que lhe era destinado fossem ocupar seus postos. Chegaram no mesmo instante, e o libertino tornou a afundar nos seus braços, em meio a novas impurezas. (SADE, 2018, p. 110).

A carência quase infantil de uma figura membro da instituição basilar do Antigo Regime é demonstrativa da ferramenta que a paródia proporciona por meio da hipérbole, habilmente utilizada por Sade, Giorgio Agamben (2007, p. 42) destrincha o caráter duplo e dialético interno da paródia e nos possibilita a percepção da operação realizada por Sade em seu romance: “confundir e tornar duravelmente indiscernível o umbral que separa o sagrado e o profano, o amor e a sexualidade, o sublime e o ínfimo.”. Eis o grande segredo da paródia, ela torna iguais elementos que temos como diferentes, ela anula de forma intestina o que entendemos como certo e errado em um artefato que zera momentaneamente o ético e o moral e, nessa operação contraditória, é capaz de nos fazer questionar a validade desses mesmos elementos, ao nos ser revelada a proximidade entre os elementos que são, em aparência, contrários. Eis o valor da parábola e da hipérbole.
Marquês de Sade é, nesse ponto, mais humorista, sátiro, do que um pornógrafo, a pornografia é uma ferramenta para que este solte piadas contra a moral aristocrática que via como hipócrita, sua narrativa sempre ruma para uma série de desventuras em que sujeitos das elites do Antigo Regime, símbolos de poder, se metam nas situações mais mesquinhas, cotidianas, que lhe tirem a aura de sacralidade construída pelo “teatro de poder”. Um provocador, sua introdução é o exemplo claro de que Sade sabia do impacto de seu enredo e se orgulhava de horrorizar, diferente do quadro que pintam do mesmo em algumas reproduções como Contos Proibidos do Marquês de Sade (2000) de Philip Kaufman, que apresenta o Marquês como uma figura animalesca movida pelos seus desejos sexuais e que escreve para sana-los em vão.

Aqui está a histórica de um magnífico banquete em que seicentos pratos diferentes se oferecem ao seu apetite. Acaso você vai comer todos? Não, provavelmente, mas esse número prodigioso amplica os limites de sua escolha e, radiante com esse aumento de possibilidades, você não se atreve a ralhar com o anfitrião que o regala. Faça o mesmo aqui: escolha o que quiser e deixe o resto, sem reclamar desse resto só porque não tem o dom de agradar-lhe. (SADE, 2018, P. 80)

O autor volta-se ao seu leitor, comparado os momentos de socialização, imponência e ostentação da aristocracia, os banquetes, às opções de imoralidade sexual (Como a imoralidade era entendida historicamente nesse momento) e afirmando que se o leitor se horrorizar, não reclame, pois em um banquete ao não gostar de uma opção, apenas se passa para a outra que lhe agrade mais. Essa banalização proposital é uma comparação profana, segundo o conceito de profanação talhado por Giorgio Agamben (2007, p. 75):  “Profanar  não significa  simplesmente abolir e cancelar as separações,  mas aprender delas a fazer um novo uso, a brincar com elas.”. O sagrado está na ilusão de imobilidade, de não movimentação, de incomparabilidade, a operação narrativa realizada por Sade vulgariza a imagem de opulência aristocrática, joga-a em um jogo comparativo dos mais mesquinhos e, portanto, dos mais ofensivos a sua classe.
Assim, 120 dias em Sodoma possui tudo que o Marquês de Sade mais valorizava, uma comédia ácida e amoral, que usa de hipérboles constantes para ridiculizar o “teatro de poder’ da aristocracia. A pornografia não é o núcleo de suas histórias, a sátira sim, a pornografia é uma ferramenta de Sade para chegar a sátira mais ofensiva que consegue fazer, se utilizando de quantas heresias puder. Esse foi o grande crime pelo qual foi encarcerado.


Fonte:

SADE, Marquês de. 120 em Sodoma ou a escola da libertinagem. 1ª ed. Penguin Companhia, São Paulo, 2018.


Bibliografia:


AGANBEM, Giorgio. Profanações. 1ª ed. Boitempo Editorial, São Paulo, 2007.
GINZBURG. Carlo. O Queijo e os vermes. 1ª ed. Companhia de Bolso, São Paulo, 2015.

LUKÁCS, Gyorgy. Para uma Ontologia do Ser Social II. 1ª ed. Boitempo Editorial, São Paulo, 2013.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã: Crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas. 2ª ed. Boitempo Editorial, São Paulo, 2008).
NIETZSCHE, Friedrich. A genealogia da moral. 1ª ed. Editora Escala, São Paulo,  2013.
THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em Comum: Estudos sobre a cultura popular tradicional. 1ª ed. Companhia das Letras, São Paulo, 2015.

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