ISSO NÃO TE FAZ MAL? MAL É O QUE ME FAZEM!¹
Estratégia
do Diferimento²:
Para
manipular o povo a quarta maneira é apresentar uma situação impopular é
apresentá-la no presente como dolorosa, mas necessária para algo futuro. “É
mais fácil aceitar um sacrifício futuro do que um sacrifício imediato” e isso
porque o esforço não é empregado imediatamente e o povo tem a ingenuidade de
crer que amanhã tudo será melhor, que o mal será evitado. Contudo, o que
acontecerá é a população acostumar-se e resignar-se às mudanças.
Surgiu o sol com galos tecendo as manhãs.
Ele se levantou nu como resultado da noite passada. Olhou pela janela sem
ver o telhado da casa ao lado, o terraço da casa seguinte e nem os outros
prédios.Na cama ainda há quem dorme.
Pela janela de seu quarto olha além das grades; está a observar somente a
si e a quem ainda dorme. Pensa ainda nos seus alunos, nos colegas, na atual
política que gradualmente foi criando leis contra imigrantes e agora projeta
para o futuro ideias chauvinistas, machistas, misóginas e homofóbicas.
Quatorze anos e tão
carregado de ódio. E não dá para, apenas, pensar que seja a imaturidade da
idade. – Reflete
acerca do aluno que defende a volta da ditadura e proclama “Boçalnaro 2018” e
agradece intimamente por hoje não ter as duas primeiras aulas.
Em alguma casa próxima, talvez a com entrada na rua de trás, na verdade,
um beco sem saída, parece vim do rádio:
“É provável que nada disso se faça
necessário porque... aleluia... o futuro a Deus pertence. Mas é bom que a
população não se esqueça que estamos aqui para seu bem. – Deus seja louvado! – O
Senhor nos escolheu para fazermos no Brasil a danação. Digo, uma grande nação.
Porque é da nação que cuidamos; pela vontade de Jesus e eleitos por vocês. E
entre nós há estrangeiros que não seguem a Jesus. E entre nós e estes
estrangeiros, que pereçam eles pelo bem da nação, que é o povo brasileiro. Não
um povo qualquer, mas um povo varonil. E sendo varonil não podemos coexistir
com os sodomitas, pois diz o Senhor que...”
Pensa em duas coisas. A primeira é na fala radiofônica: “É provável que
nada disso se faça necessário...” e calcula: “Paulatinamente o desgoverno
golpista foi implantando horríveis medidas contra a população e esta foi
deixando-se levar na vã esperança de se livrar da inevitável colheita do que
foi sendo plantado”. A segunda: “Melhor ouvir os bons amigos”; fecha a janela
para não escutar tantas blasfêmias aceitáveis para o povo. No velho armário
amarelado próximo a janela pega um livro, lê um poema e se fixa na estrofe: “Que
monstros existem / nadando no poço / negro e fecundo?”³. O amigo o exorta a não
fugir nem se acovardar, mas também a não se descuidar.
Finalmente sai da janela. Ainda pelado vai à sala trabalhar no computador;
necessita planejar as próximas aulas. Bom tempo depois uns braços morenos lhe
abraçam e ele larga o aparelho. Vão ao banheiro banhar-se para dormirem horas
depois de deitados. E um não se preocupa com a barriguinha proeminente do
outro. É a vantagem da meia idade. Se falta elasticidade, sobra capacidade...
Sai para o trabalho. Na sala dos professores, olhares apreensivos.
- Viram o Fanático ontem? – Depois dos olhares de alguns, o professor
Cleiser Coura continua. – Ficou proibida qualquer propaganda gay.
- Como assim?
- A Parada Gay, por exemplo, passa a ser considerada propaganda, pois, segundo
a Câmara dos Deputados, é “incentivo à promiscuidade”.
- Esfera, a gente te vende por aqui...
Comenta a professora Feliciana Saldanha e Claudina Abrantes, professora
de História, acrescenta:
- Para piorar, embasou-se no Código Penal de quando Dom Pedro I era
imperador e criou a lei 24.666. – Pega o celular, acessa a internete e lê. –
“Todo cidadão adepto à prática de perniciosa licenciosidade sodomita sofrerá
perda de sua cidadania; terá confiscado todos os seus bens; não poderá prestar
concurso público nem estudar em Universidades Públicas; sofrerá demissão
sumária de qualquer emprego público ou privado; e poderá sofrer degredo”. E não
para por aí, diz mais adiante que “aquele que souber de algum homossexual e não
o delatar ao Poder Público sofrerá perda de emprego em setor público ou privado;
não poderá prestar concurso público; sofrerá prisão de dois a...”.
Toca o sinal para o fim do recreio. Na sala, os mesmos alunos conversam
entre si ou brincam no celular; exceto os dois únicos estudantes da turma.
- Olá! Como podiam ver pela minha roupa, eu estávamos aqui para falar
sobre coesão e coerência. Já que a roupa será sinal de conhecimento que não
estou pelado.
Devido ao estranhamento, metade da turma olhou o professor.
- Estou percebendo que vocês acharam esquisita a minha fala. Sinal que
perceberam a ausência de coesão e, principalmente, de coerência. E este será o
tema de nossa aula de hoje: Coesão e Coerência.
Assim que diz isso os alunos voltaram ao que faziam antes: não estudar.
- Coesão é quando ocorre conexão entre as ideias. Quer dizer, a sequência
entre palavras, frases, parágrafos deve ser lógica. Coerência é quando o texto
possui sentido. Então a coesão é composta por elementos estruturais enquanto a
coerência é composta pelo significado do texto. Os itens que garantem a coesão
são quatro. Referência e reiteração, as substituições lexicais, os conectores e
as correlações dos verbos. Quem sabe o que seja reiteração?
- É fazer de novo, professor. – Maria responde.
- Exato. Então referência e reiteração é quando um termo faz referência a
outro; seja por repetição ou por substituição de outro de significado
semelhante. Os conectores estabelecem relação de dependência e ligação através
de conjunções, preposições e outros. Substituição lexical acontece trocando uma
palavra por outra. Já a correlação dos verbos é a correta utilização dos tempos
verbais.
- Foi o que não aconteceu quando o senhor começou a aula, né professor.
Tinha verbo no passado e no futuro para algo no presente.
- Além de ser primeira pessoa, mas usou o verbo na terceira.
- É isso aí. Os dois acertaram. Agora vamos falar um pouco sobre
coerência. Naquela minha fala inicial o fato de estar vestido tem ligação com
ensinar algo? Não, né. Assim ela era incoerente. E se eu disser “a noite está
linda porque o sol está brilhando”, tem coerência?
- Não! – Maria responde.
- Os princípios básicos da coerência são três. Um deles, chamado de não
tautologia...
- Palavra difícil, professor.
- Tautologia, Maria, é dizer as mesmas ideias por formas diferentes. Mas
não se preocupa muito com essa palavra; é mais importante entender do que
decorar esse nome. Então, tautologia é repetir ideias através de palavras
diferentes e não acrescentar nenhuma informação nova. É chover no molhado ou
ficar enrolando, enrolando... Outro princípio é a relevância. Isso quer dizer
que se peço uma redação sobre o respeito ao diferente é para ficar falando de
clima ou se a religião que segue é boa?
- Não. Mas se for falar da religião para explicar porque devemos
respeitar os outros... Aí pode, né professor?
Responde Maria e Marcelo completa:
- Ou então falar da religião quando ela diz que não devemos respeitar
certas pessoas.
- É! Nesses casos sim. Porque ocorre ligação; há coerência. Mas se o tema
é respeito e simplesmente fala de religião sem ter ligação com o assunto... Não
está coerente. Vejo que já entenderam dois dos princípios. Agora vamos ao
terceiro, que é o da contradição. Quem sabe me dá um exemplo de contradição?
O silêncio dos dois chega aos ouvidos do professor entre a balbúrdia da
turma.
- Gente! A frase que eu disse agorinha mesmo: “a noite está linda porque
o sol está brilhando”; é um exemplo. Quem sabe me dizer outro?
- As ruas estão molhadas porque não choveu.
- Excelente, Marcelo. Agora, Maria, você sabe explicar porque ela é
contraditória?
- Ah, não sei... – Pausa de uns segundos para pensar e continua: Será
porque se a rua está molhada alguma coisa tem que ter acontecido para isso
acontecer? Seja pela chuva ou por outra coisa.
- E se choveu, a rua tem que se molhar. – Marcelo completa.
- Nota dez para os dois.
Continuam discutindo o assunto até o sinal indicar o término da aula.
Em casa encontra Faruk orando em direção a Meca.
- Ficou em casa o dia todo?
- Como sair se posso ser preso e deportado para Síria?
- É preciso tomar cuidado! Recorda da lei que poderia vir a surgir sobre
pessoas como nós?
- Homossexuais?
- É! Entrou em vigor.
- E como ficar em sua casa se preciso trabalhar?
- Nossa casa...
- Como nossa se não posso colaborar nas despesas?
A dor de Faruk é compreensível. Como bem diz o nome, além de leal é
severo consigo mesmo. Mas com um abraço reforça que é deles a casa. O dia
transcorre e depois da noite ele se levanta nu. Olha pela janela e não vê a
toalha pendurada para secar, nem o vaso de flores mortas, nem o gato. Olha para
além das grades sem ver o telhado da casa ao lado, o terraço da casa seguinte e
nem os outros prédios. E na cama ainda há quem dorme. É para eles dois que olha.
¹ NASCIMENTO, Gustavo (direção, texto e atuação). Este Corpo. Apresentação no Espaço
Hibridus (Ipatinga, MG) em 23 Jun 2018.
² Fora de Ordem. As
Dez Estratégias de Manipulação de Massas de Noam Chomsky, de Avram Noam
Chomsky. Disponível https://www.youtube.com/watch?v=xBVUBJXWXWY&index=284&list=LLIH2YzhXzK4qmn97DyBrAbA&t=23s
. Acesso 04 Jun 2018.
³ MELO NETO, João Cabral de. O Poema. Poesia Completa e Prosa. Antônio Carlos Secchin (org.). 2ª ed. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 2007. P. 52.
ARAÚJO, Ana Paula
de. Coesão e Coerência Textual. Disponível https://www.infoescola.com/redacao/coesao-e-coerencia-textual/ . Acesso 26 Jun 2018.
BOMFIM, Silvano Andrade do. Homossexualidade, Direito e Religião: da pena de morte à união estável.
A criminalização da homofobia e seus reflexos na liberdade religiosa.
Disponível http://www.esdc.com.br/RBDC/RBDC-18/RBDC-18-071-Artigo_Silvano_Andrade_do_Bomfim_(Homossexualidade_Direito_e_Religiao_da_Pena_de_Morte_a_Uniao_Estavel).pdf
. Acesso 26 Jun 2018.
Rubem Leite é escritor, poeta e crontista. Escreve ao Ad
Substantiam semanalmente às quintas-feiras; e todo domingo no seu blog
literário: aRTISTA aRTEIRO. É professor
de Português, Literatura, Espanhol e Artes. É graduado em Letras-Português. É
pós-graduado em “Metodologias do Ensino da Língua Portuguesa e Literatura na
Educação Básica”, “Ensino de Língua Espanhola”, “Ensino de Artes” e “Cultura e
Literatura”; autor dos artigos científicos “Machado de Assis e o Discurso
Presente em Suas Obras”, “Brasil e Sua Literatura no Mundo – Literatura
Brasileira em Países de Língua Espanhola, Como é Vista?”, “Amadurecimento da
Criação – A Arte da Inspiração do Artista” e “Leitura de Cultura da Cultura de
Leitura”. Foi, por duas gestões, Conselheiro Municipal de Cultura em Ipatinga
MG (representando a Literatura).
Imagens: Fotos de Vinícius Siman: Nu 01, Nu 05 e Escrevendo.
Escrito e
trabalhado entre 23 e 28 de junho de 2018.
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