Elogio a “Distopia”, do grupo Boca de Cena

Foto: Divulgação

Na noite desta quarta (04), minha caneta funcionou freneticamente enquanto assistia à performance Distopia, dirigida pelo que considero o maior se tratando de teatro: Adão de Faria. As produções do grupo Boca de Cena sempre me prendem, me amarram; não falto em uma apresentação sequer, e faço questão de levar alguém, sem medo de desagradar. Adão vem com uma nova estética teatral e linguística, explora as camadas mais profundas da consciência (e subconsciência) do performer — e digo performer enquanto público e enquanto ator; o que, não me lembro onde, já ouvi chamarem de “espectatores”.
Distopia trata-se do teatro sobre o teatro, uma autobiografia de quem faz (e, portanto, é) o teatro; algo como nos romances de Nassar e Flaubert e nos poemas de Baudelaire, que passei a chamar: a escrita simplesmente pelo trato com a linguagem, preocupada, sobretudo, com uma nova estética cuja linguagem, soberana, seja vista como essencial (e talvez como chave central) ao enredo. Mas não há enredo em Distopia. Um poema meloso, uma fala de Romeu e Julieta, seguido de atos trágicos de Elektra (que permeia o decorrer da performance), trechos dum livro técnico de Harold Bloom sobre Shakespeare, piadas internas dos atores, depoimentos(?), psicose. Tanto é o trato com o teatro, que não sabe-se onde começa e onde termina, rompendo os limiares do tradicional.
Vendo de perto, podemos analisar essa performance enquanto terapia do performer, tratando de temáticas que, imagino, sejam de extrema importância para as atrizes Liala Coelho e Bárbara Ayôna Ribeiro (vide referências ao assédio no meio cênico, que teve repercussão mundial). Após cenas de nu total, textos densos e envolvimento interpessoal que trava relações com o público, há lufadas de ar fresco como um chiste, um riso do próprio papel e desenvoltura no espetáculo, um comentário qualquer.
Insisto em repetir: a exploração incansável da linguagem e dos limiares do teatro é a peça chave desse espetáculo que está preso numa molécula, numa bolha que flutua num tempo-espaço universo afora. É uma miscelânea de ideologias que se (des)conectam, chocando-se o tempo todo. Adão de Faria cospe na nossa cara, nos ironiza, dá altas gargalhadas do nosso ridículo e, no fim, achamos tudo um êxtase!
A agonia psicótica do fim do espetáculo é, de fato, extasiante — um conflito incansável (o teatro não acaba, a performer resiste até o fim, querendo, a todo custo, manter tudo ali, intocável, naquela bolha). Algo que aconteceu e achei o máximo; registro: nesse átimo, o envolvimento de um amigo que estava do meu lado, o rapper Luizin Ribeiro VDS, que puxou um beatbox durante a performance, acompanhado pelas palmas dos espectatores. Ui!
Com uma plástica cada vez mais cuidadosa e um desprendimento do ator-personagem (evoluindo o performer-pessoa), Distopia é um frisson, um deboche e uma obra de arte com todas as letras quando o assunto é teatro contemporâneo e artes performáticas.




Vinícius Siman


Escritor, diretor, crítico literário e militante dos direitos humanos. Tem nove livros publicados.
Escreve ao Ad Substantiam semanalmente às sextas-feiras.
Contato: souzasiman@gmail.com

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