Contra a ideologia hippie






A negação ao estilo de vida capitalista, ao trabalho visando apenas a produção da mais valia e valorização do capital dos patrões pode se traduzir de muitas formas, como lutas socialistas (Marxistas ou não), anarquistas, religiosas e entre outras. Neste texto focarei na forma mais “pop” de ser contra o sistema, principalmente nos anos 60, mas que tem reganhado força nos últimos três anos Brasil afora, o movimento hippie.
A negação do movimento hippie ao sistema capitalista se dá como uma negação de todos os instrumentos deste, suas formas de sociabilidade, de linguagem, de produzir, de consumir, também as formas laterais de dominação, a família burguesa, a moral sexual vigente e etc... O clímax da agitação hippie se deu no festival woodstock, que se deu entre e 15 e 18 de agosto de 1969, na cidade de Bethel, Nova York. Dias de drogas correndo soltas e amor livre, a apoteose da militância de classe média norte-americana, feito já superado em público por shows de Michael Jackson, mas lendários por sua significância na época e pela divisão que causou na sociedade.
O movimento hippie, porém, apesar do despertar que causou na época para determinadas pautas sociais, como maior atenção a causa racial nos Estados Unidos, por exemplo, abraçou, desde seu início, um abstracionismo idealista absurdo, além de uma negação ingênua da modernidade, rejeitando até os benefícios gerados historicamente pela sociedade burguesa. Neste texto citarei alguns exemplos dos problemas dos ideias do movimento hippie.

Prometeu acorrentado... Mas cheirando a flores e viajando em ácido

O fogo, no mito de Prometeu, não é literalmente o fogo, mas o conhecimento, a tecnologia, a capacidade de produzir intelectualmente que apenas os deuses possuíam, ao roubar o fogo dos deuses e dá-lo aos humanos, Prometeu não apenas deu o meio para iluminação da noite, mas o pontapé para o início do próprio início da civilização, pagando pesado preço por seu amor a humanidade logo em seguida.  O mito de Prometeu conta a origem da capacidade humana de produzir tecnologicamente e a importância desta capacidade para a saída do estilo de vida nômade e a melhoria de nossas capacidades de sobrevivência diante da natureza.
O movimento hippie prega uma volta a estas origens, o nomadismo, o isolamento em comunidades autônomas, em que se viveria em um refúgio da modernidade, alcançando a felicidade e a satisfação no contato com a natureza e na transcendência espiritual. Um regresso ás raízes, dentro do que as raízes sejam nesta visão idealizada. Prometeu foi longe demais?
A máquina moderna, o estilo de vida que gira em torno dela são coisas a ser rejeitadas, a máquina escraviza o homem, o cheiro do metal nos afasta de nossa mãe terra, nos torna frios, tais quais a própria máquina. A busca pela felicidade neste tipo de sociedade opressora, que enche os indivíduos de compromissos e de tabus, torna-se uma atividade inútil. Para encontrar a felicidade, o ser humano deve olhar para suas origens, retomar sua espiritualidade primordial, aprender a ver a beleza nas menores coisas que a natureza nos oferece. A essência do belo natural se perde a cada vez que a barreira natural é afastada pelo processo mecânico.
Esta lógica estaria mesmo correta, a máquina teria nos corrompido? A fumaça da indústria teria mesmo impedido que olhássemos para o céu e víssemos o transcendente? O som dos processos mecânicos industriais teriam nos impedido de ouvir o nosso eu interior com quem precisaríamos nos reconciliar? O problema do mundo é este, afinal, que todos não conseguem mais ouvir seu eu interior e encontrar a felicidade? Essas perguntas nem sequer são importantes, nem suas respostas são capazes de dizer qualquer coisa relevante.
Karl Marx (2013, p. 513) responde a afirmações parecidas que se faziam no Século XIX, quando os operários imaginavam a época anterior a revolução industrial como uma “era de ouro” a qual deveríamos retornar. Essa resposta continua apropriada.

As contradições e os antagonismos inseparáveis da utilização capitalista da maquinaria inexistem, porquanto têm origem não na própria maquinaria, mas em sua utilização capitalista! Como, portanto, considerada em si mesma, a maquinaria encurta o tempo de trabalho, ao passo que, utilizada de modo capitalista, ela aumenta a jornada de trabalho; como, por si mesma, ela facilita o trabalho, ao passo que, utilizada de modo capitalista, ela aumenta sua intensidade; como, por si mesma, ela é uma vitória do homem sobre as forças da natureza, ao passo que, utilizada de modo capitalista, ela subjuga o homem por intermédio das forças da natureza;

Este trecho de Marx serve para derrubar duas falácias hippies, a primeira é que a máquina é a fonte das corrupções humanas, que ela gera o consumismo e que ela está umbilicalmente ligada ao modo de vida capitalista, pelo contrário, apriori a máquina facilita o trabalho da pessoa, o encurta e o torna menos opressivo, mas dentro da lógica do capitalista, ele permite que a produção seja quintuplicada por uma mesma pessoa, então se produz mais sem que se diminua a jornada de trabalho, tornando a produção mais extasiante e repetitiva. Assim, não é a máquina que oprime o ser humano, não é a máquina que deve ser negada, mas o contexto no qual a máquina está inserida.
A segunda falácia é que a máquina e a natureza são opostas, não, a máquina é uma forma de processar a natureza, trabalha com a natureza, o próprio trabalho, em si, é uma forma de transformação da natureza. A máquina não existe sem a natureza, ela é natureza transformada e transformadora da natureza em benefício da sobrevivência humana, mas os seus modos de uso no regime de produção capitalista a transformam em uma destruidora da própria natureza que a gerou e torna o ser humano oprimido pelos limites de seu próprio corpo, limites naturais. Esta é, afinal, uma das contradições do sistema capitalista, as metas de produção são infinitas, enquanto a matéria-prima a ser transformada pelo trabalho é finita. Lucáks (2012, p. 361) completa o raciocínio de Marx:
A conexão múltipla entre o trabalho e sua base natural intensifica-se ainda mais pelo fato de o trabalho, em sua técnica, ser determinado por capacidades e conhecimentos dos homens, que são a base dessa técnica, ou seja, é determinado de modo social.

A forma como a técnica é aplicada e os impactos destas não é determinada aprioristicamente pela técnica em si, mas pelas formas como os seres humanos que a criaram dela se apropriam, os usos que lhe são dados, a forma como estes impactam o meio. O mesmo trabalho que criou uma máquina poluente, pode criar uma máquina sustentável, que impacte menos, mas se há o interesse para esses desenvolvimentos tecnológicos é outra história, são condicionados socialmente. As máquinas, em si, sua lógica, não são coisas ruins, assim como a natureza “em essência” não é, necessariamente, boa. Devemos, então, fazer uso abusivo, destrutivo, dessa tecnologia, a ponto de mudar o equilíbrio do próprio ambiente, transformando a natureza a ponto de esta não mais sustentar nossa própria existência? Hans Jonas (2011, p. 44), em suas reflexões sobre uma “ética do futuro”, diz:
(...) o horizonte relevante da responsabilidade é fornecido muito mais pelo futuro indeterminado do que pelo espaço contemporâneo da ação. Isso exige imperativos de outro tipo. Se a esfera do produzir invadiu o espaço do agir essencial, então a moralidade deve invadir a esfera do produzir, da qual ela se mantinha afastada anteriormente, e deve fazê-lo na forma de política pública. Nunca antes a política pública teve de lidar com questões de tal abrangência e que demandassem projeções temporais tão longas. De fato, a natureza modificada do agir humano altera a natureza fundamental da política.

A dimensão da responsabilidade precisa ser pano de fundo para nosso pensar tecnológico, o princípio pensado por Jonas precisa completar o de Lukács e o de Marx, não como medida individualizada de um bando de curtidores da vida que se isolam em uma fazendo, mas como medida pública, como ética civilizatória, como fundo político do fazer produtivo humano. Qual o problema nesta questão? A ética do capitalismo, de propriedade privada absoluta dos meios de produção e a própria lógica desta produção, que visa a obtenção infinita e cada vez mais inflada do lucro onde quer que este se encontre, motivada pela concorrência. Só o controle social dos meios de produção poderiam garantir o princípio responsabilidade.
Mas, de forma alguma, a máquina é o problema, a máquina não deve ser a negação, a máquina e a manipulação da terra facilitam nossa vida e nossa própria capacidade de sobrevivência em termos básicos (Obtenção de alimento, comunicação, combate a doenças e entre outras).

Que fé que nada... Com um doce você chega no paraíso

Astrologia, medicina alternativa, ocultismo e outras charlatanices estão na ordem do dia dos movimentos hippies. Uma espiritualidade confusa, anárquica, sem centro duro, como das grandes religiões. Crenças fluídas e, por isso, até menos críveis, mas que oferecem uma liberdade tão grande ao crente que, mesmo sem o menor sentido lógico (Que até a igreja procura, o que é a teologia senão isso?), é atraído pelo extremo conforto de saber que o mundo faz completo sentido, que o universo todo está harmonicamente conectado de forma subjetiva e isso sem nenhuma entidade antropomórfica opressora e moralista.
A forma principal de alcançar o êxtase religioso dentro da ideologia hippie? A alucinação. Alcançar o “sobrenatural” por entorpecentes não tem outro nome senão “alucinação provocada”. Por algum motivo se acredita que a alucinação provocada pelos que, por coincidência, são chamados de alucinógenos, são encontros com o sobrenatural. No mínimo, algo ingênuo, os processos que levam a alucinação são cientificamente explicados, não apenas, são subjetivamente explicados também, pois cada pessoa tem uma alucinação única, “sua viagem”. Existem então milhares de “além”? Cada um vivencia o sobrenatural do seu jeito? Isso é uma afirmativa furada, pois elementos perfeitamente localizáveis nas experiências individuais dos indivíduos alucinados são projetados na alucinação. Chamar isso de “sobrenatural” é, no mínimo, um egocentrismo gigantesco... Cósmico (hehehe).
Carl Sagan (2016, p. 130) explica a alucinação com uma poética analogia:

As experiências alucinatórias, assim como as dos sonhos normais, ocorrem quando se reduz a “luz do dia” (Dados sensoriais de entrada), ao passo que a “iluminação interior” (O nível geral da excitação mental) permanece “brilhante”, e as imagens que se originam dentro das “salas” de nossas mentes podem ser percebidas (alucinadas) como se viessem de fora das “janelas” de nossos sentidos.

Assim, as alucinações são processos “locais”, localizáveis em nosso próprio sistema psicológico, químico. Disfunções ou alucinógenos podem provocar grandes efeitos de “excitação mental” que confundem nossa cognição, fazendo com o que nossas experiências pessoais, sentimentos e preocupações sejam projetadas em nossa visão para o exterior, de forma que eles mesmos pareçam vir de fora. Este processo mecânico ocorre em todos os casos, mas as experiências que se tem na alucinação são, em esmagadora maioria, distintas e pessoais, exatamente por cada indivíduo ter uma história de vida própria e, por consequência, um arcabouço de elementos projetáveis diferente.
Carl Sagan (2016, p. 131) complementa: “Estaríamos certamente perdendo algo importante sobre a nossa natureza, se nos recusássemos a enfrentar o fato de que as alucinações são uma característica humana.” . As alucinações são fenômenos de nossa mente, provocados ou não, são “locais”. Atribuir um sentido espiritual a alucinação é escolha pessoal, mas percebam, o sentido é o “humano” que atribui, como sempre, todo tipo de experiência que se afirme espiritual é, na verdade, bastante material. O espiritual é, em verdade, criado por nós a nossa imagem e semelhança... Em um capricho.

Conclusões

As falácias new age que tiveram uma propulsão gigantesca no ocidente com os hippies, desde os anos 60 são um embuste tremendo, falaciosas, propondo análises tortas e idealistas da sociedade, pseudo-soluções que, na verdade, são fugas e um pacifismo que abre espaço para que as opressões estruturais persistam. A solução não está “em nós mesmos”, pelo contrário, mudar a si mesmo é apenas o começo, mas mudar para perceber que o problema, na verdade, está “fora de nós” e nos atravessa de alguma maneira. Isso não nos isenta de agir, pelo contrário. Tais falácias estão voltando com força em nossos dias, encontrando, em tempos de crise, novos adeptos, essas ideologias misticistas, alienantes devem ser, na verdade, enfrentadas. Isto não é algo que possa ser individualizado, me refiro a forma de pensamento espiritualista dos hippies, não as pessoas, em maioria sinceras, que participam destes movimentos.

Bibliografia:

JONAS, Hans. O princípio responsabilidade: Ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. 1ª ed. Contraponto. Rio de Janeiro, 2011.
Lukács, Gyorgy. Para uma ontologia do ser social I. 1ª ed. Boitempo editorial, São Paulo, 2012.
MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política: Livro I. 1ª ed. Boitempo Editorial, São Paulo, 2013.
SAGAN, Carl. O mundo assombrado pelos demônios. 1ª ed. Companhia das Letras, São Paulo, 2016.




SUED

Nome artístico de Línik Sued Carvalho da Mota, é romancista, novelista, cronista e contista, tendo três livros publicados, também é graduanda em História pela Universidade Regional do Cariri. Militante comunista, acredita no radicalismo das lutas e no estudo profundo de política, sociologia, História e economia como essenciais para uma militância útil.
Escreve ao Ad Substantiam semanalmente às segundas-feiras.
Contato: lscarvalho160@gmail.com







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