O Excedente ilusório ou “Que tiro foi esse, viado?”



O capitalismo tardio que vivemos é sem oponentes claros, totalitário e sem fronteiras, o capital que “necessita instalar-se em toda parte, explorar em toda parte, estabelecer relações em toda parte.” (MARX, ENGELS, 2007, p. 51) chegou a um novo limite. Tornado, após o fim dos regimes socialistas do Leste Europeu, o paradigma dominante, o neoliberalismo instaura uma nova ordem social, não apenas no campo econômico, mas também no cultural, social e, por consequência, no político.
A chamada pós-política é um elemento poderosíssimo em nossos dias, assim Slavoj Zizek (2014, p.116) define o pensamento da pós-política: “a fórmula definitiva da melhor ordem social possível foi encontrada na democracia capitalista liberal, e por isso deixa de haver hoje espaço para um progresso conceitual posterior, restando apenas obstáculos empíricos a superar (...)”. Basicamente, políticas emancipatórias desta sociedade vão sempre dar errado, ou seja, devemos gerir a sociedade capitalista, encontrar seus problemas e resolve-los, dentro da lógica do mercado. Assim, esta é a contradição específica do capitalismo em nossos dias (Peculiar a esta fase), há espaço para que movimentos sociais percebam desigualdades e contradições, mas apenas de forma lateral, isto é, paliativa, a desigualdade e as explorações centrais inerentes ao regime capitalista permanecem intactas por sua suposta inevitabilidade, mas os problemas laterais a ela podem e devem ser problematizados, para que o próprio capitalismo se atualize, renove-se. As perceptíveis consequências disso nas militâncias são, claramente, três:
. A resistência como “ser”, não como “estado”, se “é” resistente, não se “está” resistente, podíamos chamar isso de progressismo isento de substância ou “Progressismo virtual”. Os movimentos sociais não pensam mais a resistência como estado de coisas que deve ser esgotado, mas como identidade própria, inerente ao gênero, pele e condição sexual, tal qual uma fotografia, na comparação feita por Giorgio Agamben (2007, p. 28): “graças à objetiva fotográfica, o gesto agora aparece carregado com o peso de uma vida inteira.”. Basicamente, não se luta mais para deixar, um dia, de ter de resistir, mas para mostrar que é resistente, que tem uma mensagem, que os antepassados resistiram antes e que se resiste igualmente agora, vivemos todos e todas no eterno “dia final”. O aspecto progressista das ditas lutas progressistas, na prática, se perdeu. É a concretização máxima da velha concepção liberal:

E não seria isso enfaticamente verdadeiro com relação a época pós-moderna, em que existe a liberdade de construir, desconstruir, distanciar-se? Não devemos esquecer de que a afirmação de Chesterton é a mesma afirmação feita por Kant em seu “O que é Iluminismo?”: “Pense o quanto quiser, com toda a liberdade que quiser, mas obedeça!”. A única diferença é que Chesterton é mais específico e esclarece o paradoxo implícito oculto no raciocínio de Kant: a liberdade de pensamento não somente não solapa a servidão social real, mas na verdade a sustenta. O antigo lema, “Não pense, obedeça!”, a que Kant reage, é na verdade contraprodutivo: ele gera rebelião; a única forma de garantir a servidão social é por meio da liberdade de pensamento. (ZIZEK, 2003, p. 17).

E reitera:
(...) oferece a própria realidade esvaziada de sua substância, do núcleo duro e resistente do real – assim como o café descafeinado tem o aroma e o gosto do café de verdade sem ser o café de verdade, a realidade virtual é sentida como a realidade sem o ser. (ZIZEK, 2003, p. 25).



A mídia mostra o racismo, aparentemente o denuncia; mostra a fome, aparentemente a denuncia; Ela jamais mostra a questão estruturalmente, o que gera esta fome? O que gera este racismo materialmente (Até mostra, mas apenas no campo cultural)? É como um médico, que dita uma série de sintomas a seu paciente, sem jamais lhe dizer qual é, exatamente, a doença. Tratam-se apenas os sintomas, toma-se uma série de remédios, a doença permanece lá, não se sente mais tanto a dor, pode-se controla-la, mas o agente causador ainda está se reproduzindo e gradativamente mais rápido. “O confortável lugar de resistência” é uma das características mais marcantes do capitalismo tardio que vivemos (Alguns dirão que vivemos no pós-modernismo, em termos culturais, tentando isentar os sistemas de produção de tamanha responsabilidade, lembre-se, a crítica vem se dando apenas lateralmente).

. A especificidade da crítica, esta é consequência da primeira, afeta a todos do espectro político no Século XXI, a incapacidade de perceber as coisas estruturalmente, percebe-se a estruturalidade de um sintoma (Racismo estrutural, homofobia estrutural, machismo estrutural), mas há a incapacidade de perceber como estes sintomas se ligam, quais são seus pontos de aproximação e mais, qual exatamente o contexto no qual se dá e qual a influência deste contexto nestes sintomas? Esses sintomas não tem história própria, eles estão ligados umbilicalmente a diversos elementos (Modos de produção, religiosidade, cultura, discursos dominantes) que não são específicos, são como uma grande rede de influências.
Este problema é também dúbio, pois ao mesmo tempo que esta especificidade tem seu lado bom, dá amplitude as diversas facetas do problema (O machismo afeta de forma diferente mulheres negras e mulheres brancas, uma verdade), dando uma percepção mais ampla deste, decide-se, em vez de perceber como os machismos se ligam e se manifestam fenomenologicamente como “o outro”, lutar de forma distinta, numa grande rede de retalhos, para conseguir os paliativos que o regime da pós-política neoliberal permite (Representatividade, empoderamento e entre outros) e, as vezes, luta-se até de forma contraditória com outros movimentos e vertentes (Transsexuais comemorando que agora são capas de playboy, enquanto os movimentos feministas denunciam isso como objetificação? Hããã?), o que vem tornando a esquerda pouquíssimo ameaçadora na prática, como destaca José Luís Fiori (2007, p. 260): “Durante a guerra fria, a esquerda foi considerada uma força política coesa e uma e uma ameaça homogênea. Mas, agora, segundo os conservadores, suas classificações internas são tantas e tão confusas que lembram a classificação dos animais chineses.”. A esquerda, tal qual uma empresa, na lógica da pós-política de “gestão”, age com uma série de setores e departamentos, alguns concorrendo entre si pelo “poder’ em um sentido Nietzschiniano (Não se luta por uma causa, mas por poder).
. Afetividade, sentimentalismo e superestima da empatia. A caridade é superestimada em um regime que não se critica a exploração inerente a um meio de produção. Vemos os grandes capitalistas fazendo doações milionárias, artistas falando em uma tal “política dos afetos” que ninguém sabe descrever exatamente. O pacifismo é hipervalorizado, em casos como os dos protestos de 2013, ou a violência é rasa, “mensagem em si mesma”. Não se sabe exatamente o que fazer? Mas fazer algo já é alguma coisa, mesmo que essa coisa seja uma oficina de turbantes e... Apenas. A volta da caridade cristã como grande paradigma de bem volta sobre outros meios em nossos dias, se aplaca o sofrimento de nossos momentos áridos, mas jamais se criticam as causas fundamentais disso, pois, pois... Espera-se a Cristo ou o que? Uma interessante anedota neste aspecto está em uma frase famosa de, olhem que ironia, um arcebispo: “Quando dou comida aos pobres me chamam de santo – disse o arcebispo brasileiro Hélder Câmara – E quando pergunto por que eles não têm comida, me chamam de comunista. (GALEANO, 1999, p. 319). Hoje em dia ser comunista? Bem, talvez em ano de moda retro.
Certo, até agora estivemos a falar sobre algumas consequências da plena aceitação do “fim da História” pela esmagadora maioria dos movimentos sociais no Brasil e no mundo, agora analisaremos como, dialeticamente, esta mudança no paradigma político e mercadológico levou a profundas mudanças culturais e como essas mesmas mudanças culturais dão pano pra manga para novos produtos mercadológicos e, surpreendentemente, uma completa revitalização das formas ideológicas dominantes. Zizek, em seu documentário “O Guia perverso da Ideologia”, chama de “excedente ilusório” um sentido metafísico inerente a materialidade de um produto. Não se compra apenas uma bolsa feita de couro, compra-se status, não se compra apenas um carro, compra-se aceitação ou rejeição social, esse é o papel da propaganda, naturalizar o consumo, mas também lançar sentido sobre ele, como Marx (2011, p. 44) escreveu: “Na produção a pessoa se objetiva, na pessoa a coisa se subjetiva.”. Algo muito interessante vem acontecendo em nossos dias, algo nunca antes visto nesta escala: Não se compra apenas um clipe, música ou filme, se compra resistência e militância. Tal fenômeno é consequência da pós-política neoliberal e é um sintoma imbuído dos três elementos que enumerei mais acima.
Existem muitas músicas que se vendem como “de resistência” e músicos que são adotados por movimentos sociais, mas selecionei, por sua proximidade cronológica, Jojo Maronttinni uma das funkeiras que entram na Anitta wave (Anitta é revolucionária sim, revolucionou as capacidades de as grandes gravadoras, brasileiras e gringas, lucrarem com o funk carioca e... Só) com seu clipe “Que tiro foi esse”. O clipe não mostra nada demais, sua letra trás jargões da comunidade LGBT (Da qual eu faço parte), o grande destaque está na própria artista, que é plus size, assume-se gorda e orgulha-se disso (O que, de fato, é digno de nosso aplauso) e por mostrar negros em lugares de poder no mercado (Vide o começo do clipe), o que eu, como comunista, acho problemático, o lugar emancipatório (Empoderado) das pessoas pretas em nossa sociedade é tomando parte na exploração da classe trabalhadora (Isso obviamente incluindo negros)? Mas enfim... Analisemos o processo do qual o clipe é resultado e causador, pois o capital é sempre o alfa e o ômega do processo de produção.
O processo da mercadoria se dá com uma notável ambiguidade interna, dubiamente, Marx (2011, p. 47) coloca:
A produção, por conseguinte, produz não somente um objeto para o sujeito, mas também um sujeito para o objeto. Logo, a produção produz o consumo, na medida em que 1) cria o material para o consumo; 2) determina o modo do consumo 3) gera como necessidade no consumidor os produtos por ela postos primeiramente como objetos. Produz, assim, o objeto do consumo, o modo do consumo e o impulso do consumo. Da mesma forma, o consumo produz a disposição do produtor, na medida em que solicita como necessidade que determina a finalidade.

Esse processo não se dá por fases, cada um carrega-se objetivamente em si, se dão ao mesmo tempo, dialeticamente, esta é a lógica interna objetificada na mercadoria, basicamente, não é apenas a demanda que incentiva a produção, mas a produção, ao mesmo tempo, cria a demanda. Se percebe uma tendência geral no meio social, cria-se um produto, mas este produto cria um padrão de consumo e tendências a partir de si mesmo, para perpetuar e valorizar a movimentação do capital envolvido em sua produção. A produção não cria só o produto, mas também o consumidor, no sentido de que cristaliza a identidade da “clientela”. Na produção dessas músicas, que são, em si, produtos, mercadorias, “objetos virtuais”, assim como qualquer outro produto, se pensa no “algo mais” que a diferenciará, na identidade que portar tal “coisa” conferirá a seu possuidor/comprador. O produto, então, cristaliza uma identidade, um status em sua subjetividade na pessoa, construindo grupos de identificação e dando a estes coordenadas de atuação, porém, a construção do produto nunca deixa de ser “social”, ele é produzido por indivíduos a partir de sua percepção das tendências sociais gerais, é o fetiche: A produção socialmente construída tem como “servos” seus próprios criadores.
A partir desse processo, tendo como público alvo a militância que age nos termos e limites do grande capital (A pós-política), o ativismo é embalado, nele é colocado um código de barras e este é vendido, enriquecendo alguns poucos, obviamente (Sempre os donos do capital, que colocam mais uma vez o capital em movimentação, para que este se valorize), mas, no meio social, o produto se perpetua, assim como o capital nele objetivado, como militância, como ato genuinamente político... Compra-se o “ato” genuinamente político e se adquire a resistência materializada no produto, e se valoriza o grande capital, raiz das desigualdades sociais. É o ápice da produção capitalista, ela vende militância para o alívio de seus danos, e essa mensagem, quando comprada, valoriza a própria produção capitalista. É uma das contradições fundamentais do capitalismo tardio, ele carrega em si o seu oposto, conscientemente o agrega, o empacota e o vende.
Um exemplo perfeito e simples do que estamos falando é o dado pelo roteirista de quadrinhos Alan Moore com relação as máscaras do personagem “V” de “V de Vingança”, graphic novel clássica, o autor colocou muito bem que se compram tais máscaras para protestar contra “o sistema”, mas quem vende as máscaras é o “próprio sistema”, as multinacionais de “produtos relacionados”. É essa a luta na pós-política neoliberal, a militância se pratica, se produz, se vende e se lucra e, quanto mais se luta nesses termos, mais o grande capital investido nessas iniciativas se valoriza e, quem sabe, possa encontrar seu destino explorando o mais-trabalho de locais onde a mão de obra (Força de trabalho) é mais barata, para produzir camisas, discos e “capas de celular” (Isso contato também a extração da matéria-prima) relacionadas a estas divas lacradoras de tamanha consciência social. Os trabalhadores assalariados, negros e brancos (O primeiro grupo sofre bem mais), deverão pensar, com certeza, “Que tiro foi esse, viado” ao receberem, todo mês, seus salários irrisórios, mas aposto que pensarão, sem dúvida, que seu trabalho serve ao empoderamento das divas da Anitta wave... O sacrifício, então, valerá a pena.
Porém, não duvido da sinceridade das pessoas que consomem estes produtos, elas o consomem por entenderem, de alguma forma, que o mundo vai mal, que o Brasil vai mal, que há desigualdade, apenas olham do mirante errado, do mirante secretamente vip do “fim da história” do capitalismo neoliberal. Walter Benjamin (2013, p. 55), refletindo sobre a juventude de 1913, o tempo da bélle époque, em que se imaginavam, assim como hoje, que a sociedade burguesa poderia ser genuinamente inclusiva, disse algo que continua atual: “A falta de ideais de nossa juventude é o último resquício de sua sinceridade.”. É positivo que o consumo deste excedente ilusório seja a “representatividade”, indica que os consumidores destas mercadorias sabem que vivemos em um país desigual e racista... Mas o excedente é, como já diz seu nome, ilusório. Devemos, nos termos usados por Slavoj Zizek, procurar o café real, não apenas aquilo que cheira como café. Não lutemos só contra os sintomas, procuremos saber qual é a doença, merecemos mais do que medidas paliativas, como povo e como classe.

Bibliografia

AGAMBEN, Giorgio. Profanações. 1ª ed. Boitempo Editorial, São Paulo, 2007.
BENJAMIN, Walter. O Capitalismo como Religião. 1ª ed. Boitempo Editorial, São Paulo, 2013.
FIORI, José Luís. O Poder Global. 1ª ed. Boitempo Editorial, São Paulo, 2007.
GALEANO, Eduardo. De Pernas para o ar: a escola do mundo do avesso. 1ª ed. L&PM Editores, Porto Alegre, 1999.
MARX, Karl. Grundrisse: Manuscritos econômicos de 1857-1858. 1ª ed., Boitempo Editorial, São Paulo, 2011.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. 1ª ed. Editora Escala, São Paulo, 2007.
ZIZEK, Slavoj. Bem Vindo ao deserto do real. 1ª ed. Boitempo Editorial, São Paulo, 2003.
ZIZEK, Slavoj. Violência. 1ª ed. Boitempo Editorial, São Paulo, 2014.




SUED

Nome artístico de Línik Sued Carvalho da Mota, é romancista, novelista, cronista e contista, tendo três livros publicados, também é graduanda em História pela Universidade Regional do Cariri. Militante comunista, acredita no radicalismo das lutas e no estudo profundo de política, sociologia, História e economia como essenciais para uma militância útil.
Escreve ao Ad Substantiam semanalmente às segundas-feiras.
Contato: lscarvalho160@gmail.com



Comentários

  1. Brilhante análise do capitalismo atual. Uma grande exposição do filtro que a mídia exerce na atualidade e como ela domina nossas interpretações dos signos e fenômenos.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas