O Estranho Sádico e o Terror (+18)




É fácil, muito fácil, analisarmos um filme tendo como base apenas seu enredo e diálogos, basicamente, o senso comum não analisa um filme, mas um roteiro, via de regra. Uma película, porém, é um quebra cabeças, que forma um mosaico, peça por peça, que só faz sentido em conjunto. Um diretor hábil consegue encaixar as peças do jeito certo. O cinema, porém, é um quebra cabeça diferente, paradoxal, estranho, mais do que qualquer outra arte, pois esse quebra-cabeça, com suas peças espalhadas, caóticas, jamais é organizado da mesma forma.
A habilidade de um diretor em montar esse quebra cabeça é capaz de nos causar, muitas vezes, as mais terríveis confusões e nem sempre essa confusão é causada por plot twists elaborados ou por cenas escatológicas, tampouco por fotografias grandiloquentes, mas por sutilezas laterais ao que é mostrado na tela, que atravessa os movimentos dos atores, transpassa seus olhares e gestos... Algo como o som, a música, sempre tida como algo secundário no cinema que, vez por outra esquecemos, é audiovisual.
Esse breve artigo analisará uma breve e perturbadora cena do bizarro filme Nekromantik, filme alemão exploitation de 1987, dirigido por Jörg Buttgereit. Todo o filme é sofrível, tem péssimas atuações e vale apenas para quem gosta de gore e de estudar até que ponto os seres humanos conseguem ultrapassar seus limites para além da moral e da ética na arte. Qual o enredo desta bomba? Bem, o filme fala de um estranho casal, Rob Schmadtke e Betty, o rapaz trabalha em uma empresa que limpa corpos dilacerados de cenas violentas de morte e leva pedaços de defuntos para casa, onde decoram o apartamento, esse gosto pela morte chega a um nível ainda mais bizarro quando Rob desenterra um sepultado e leva para que haja um ménage a trois necrófilo entre ele, sua namorada e o tal que já foi dessa pra lugar nenhum.
A cena em que o casal pratica necrofilia é o foco deste texto, especificamente como o diretor conseguiu tornar tudo ainda mais bizarro e confundir as coordenadas de certo e errado usando a trilha sonora. Normalmente a edição consegue nos dar pistas das coordenadas que levam a intenção ou a opinião dos produtores sobre determinado assunto, a escolha das músicas usada nas cenas ajuda a deixar explícito que algo é bom ou mau para que nós, como espectadores, façamos coro com o diretor ou contra este. Por vezes, porém, o diretor consegue criar o verdadeiro clima do sadismo – e este estranho sendo usado como Freud o entendeu em seu famoso artigo homônimo de 1919, que é aquilo que confunde as coordenadas que nos levam a aquilo que conhecemos, uma situação ou elemento que confunde nossa percepção do que entendemos como real, que tira a estabilidade daquilo que temos ou vemos como normal (Diga-se de passagem, este é um dos poucos textos de Freud que eu realmente gosto) – Um exemplo de cena deste tipo é a famosa cena do Alex, em Laranja Mecânica, clássico de Kubrick  de 1972, briga com seus druggies ao som da nona sinfonia de Bethoven, uma cena violenta onde toca uma música clássica que, aparentemente, não é esperada em um momento como este, dando a cena uma impressão de pulsão de vida, de gozo malévolo... Ficamos, como espectadores, estupefados: O que é essa estranha pulsão? 




Buttgereit nos causa, na cena do Ménage, sensação parecida, ao confundir por alguns minutos, da mesma forma, nossas percepções diante do que vemos, construindo uma cena totalmente imersa nesse sádico estranho. A música que toca durante o ménage com um morto em avançado estado de decomposição não é uma que realça o caráter hediondo e, no mínimo, anti-higiênico deste ato abissal, mas uma música lenta, romântica, terna. Ficamos, diante disso, a nos perguntar: Este diretor aplaude isso? O que devo pensar? Que sujo sarcasmo? Ele zomba de nossa cara? Muda-se, com esta ambiguidade, o jogo entre artista e espectador, qualquer possibilidade de óbvio sai de nossa perspectiva, diante de nós há uma confusão, o estranho sádico.
A cena fica ainda mais terrível por essa confusão, ela não é apenas grotesca, é estranha, não percebemos direito, graças a forma como o quebra cabeça foi montado, o que devemos entender. Em meio a todo esse lixo cinematográfico chamado Nekromantik, entre 28:29 e 31:50, há mais do que um exploitation sujo, mas uma genuína e sofisticada estratégia de aterrorizar e causar estranheza, e isso só é possível graças a trilha sonora, a música escolhida para cena e pela forma como suplanta os sons ambientes desta.
Se um desses elementos não fosse usado na medida que foi, esta “magia”, essa estranheza, se perderia, tanto em Laranja Mecânica como no filme foco do texto, Nekromantik

Para quem tem estômago, o filme está completo no youtube:







SUED

Nome artístico de Línik Sued Carvalho da Mota, é romancista, novelista, cronista e contista, tendo três livros publicados, também é graduanda em História pela Universidade Regional do Cariri. Militante comunista, acredita no radicalismo das lutas e no estudo profundo de política, sociologia, História e economia como essenciais para uma militância útil.
Escreve ao Ad Substantiam semanalmente às segundas-feiras.
Contato: lscarvalho160@gmail.com








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