Afinal, o que é ideologia de gênero?
Ideologia de gênero de fato existe? Como surgiu o conceito mais invocado no cenário político-social brasileiro contemporâneo
Visando a falta de conhecimento
do que realmente é gênero e se a chamada ideologia de gênero de fato existe ou
não, decidi escrever este artigo para tentar esclarecer e embasar os discursos
que permeiam os tempos atuais. O que é ideologia? O que é gênero? O que é
ideologia de gênero? Reli algumas obras para alcançar com clareza respostas
sólidas para essas questões.
I – O que é ideologia?
Esta primeira parte é
propositalmente homônima ao livro da filósofa brasileira Marilena Chauí, que
dissertou em 123 pequenas páginas o conceito histórico e atual do que chamamos
ideologia. Segundo a filósofa, o termo surgiu logo depois da Revolução Francesa,
em 1801, no livro Eléments d’Idéologie,
de Destutt de Tracy. Tracy e um grupo de materialistas elaboraram uma ciência
da gênese das ideias como se estas fossem algo natural que demonstram a relação
homem-meio ambiente.
Chauí, em O que é Ideologia, também fala sobre a concepção marxista de ideologia
(um dos pontos principais para entender-se a terceira parte deste artigo).
“As classes
sociais não são coisas nem ideias, mas são relações sociais determinadas pelo
modo como os homens, na produção de suas condições materiais de existência, se
dividem no trabalho, instauram formas determinadas da propriedade, reproduzem e
legitimam aquela divisão e aquelas formas por meio das instituições sociais e
políticas, representam para si mesmos o significado dessas instituições através
de sistemas determinados de ideias que exprimem e escondem o significado real
de suas relações. As classes sociais são o fazer-se
classe dos indivíduos em suas atividades econômicas, políticas e culturais.”
(CHAUÍ, 2008, p. 55).
Para Marx e Engels, em seus
estudos sobre a concepção hegeliana, a ideologia baseia-se em “como o Estado é
a forma na qual os indivíduos de uma classe dominante fazem valer seus interesses
comuns e que sintetizam a sociedade civil inteira de uma época, segue-se que
todas as instituições coletivas são mediadas pelo Estado, adquirem por meio
dele uma forma política. Daí a ilusão, como se a lei se baseasse na vontade e,
mais ainda, na vontade separada de sua base real [realen], na vontade livre.” (MARX & ENGELS, 2007, p. 76). (Abro
um espaço para agradecer Sued por dar-me de bandeja a citação de Marx e Engels
em sua tese “A Ideologia Alemã, de Karl Marx e Friedrich Engels - Resenha simplificada
em série (parte 1)”, publicada neste sítio.)
Concluindo esta parte, a visão
marxista de ideologia é no sentido de que as classes dominantes criam formas
de entender o mundo para convencer os dominados de que a desigualdade entre
classes é natural.
II – O que é gênero?
A filósofa estadunidense Judith
Butler (que vem causando grande rebuliço nos debates e embates das últimas
semanas) reestrutura o conceito de gênero beauvoiriano e aponta falhas de
contextualização em Le Deuxième Sexe,
da filósofa francesa Simone de Beauvoir.
“Essa
formulação radical da distinção sexo/gênero sugere que os corpos sexuados podem
dar ensejo a uma variedade de gêneros diferentes, e que, além disso, o gênero
em si não está necessariamente restrito aos dois usuais.” (BUTLER, 2003, p.
163).
Para Butler, a noção que temos de
gênero deve ser reformulada, mas não de forma simplista, partindo do sexo como
não-construído, como um meio passivo que age significados culturais; “tem de designar também o aparato mesmo de
produção mediante o qual os próprios sexos são estabelecidos.” (BUTLER,
2003, p. 25).
Gênero é, pois, além de
construção social (e histórica), uma construção identitária e deve ser tratado
com mais profundidade e complexidade do que vem sendo desde o início da segunda
fase do movimento feminista a partir de 1949 com a publicação de Le Deuxième Sexe.
A grande polêmica envolvendo as
discussões de gênero nas escolas do Brasil alcançou seu ápice em 2015, com o
Plano Nacional de Educação, e reverberou nos municípios e estados fazendo
surgir uma onda mais que assustadora de conservadores contra o PNE e o que
denominaram “ideologia de gênero”, no sentido de que meninos e meninas seriam
ensinados a cometer práticas homoafetivas e motivados a renegarem seu sexo
biológico.
A demonização da ideologia de gênero,
a meu ver, fez com que os movimentos de luta pelos direitos humanos recuassem
em questão a algo que nunca tinham ouvido falar. “Ideologia de gênero”
tornou-se palavrão. Os conservadores dizem que nós inventamos o termo, nós
dizemos que eles inventaram o termo, e que, na realidade, esse termo não
existe. Pois, boquiabertos, anotem: o termo existe e consta na literatura pela
primeira vez em 2004, no livro da socióloga e feminista brasileira Heleieth
Saffioti.
Para definir o conceito de Saffioti
acerca da “ideologia de gênero” seguindo o raciocínio com mais independência e
clareza, passaremos para a próxima parte.
III
– O que é ideologia de gênero?
Como disse anteriormente, o termo
“ideologia de gênero” aparece pela primeira vez na literatura no livro Gênero, Patriarcado, Violência, de
Heleieth Saffioti, mas não tem relação alguma com o que apoiadores do programa
Escola Sem Partido e anti-butleristas sugerem ao invocar as temidas palavras.
Para a boa compreensão do que
Saffioti definiu “ideologia de gênero”, é de suma importância não ter passado
apenas os olhos pela primeira parte deste artigo, onde defino o conceito
marxista de ideologia, que foi o que realmente a socióloga e feminista
utilizou. Relembrando superficialmente: ideologia, para Marx e Engels, é o
conjunto de ideias que dominantes criam para entender o mundo e naturalizar a
desigualdade de classes.
Substitua-se “dominantes” (na
conotação capital que Marx sugere) por patriarcado e “desigualdade de classes”
por submissão feminina, misoginia e machismo. Eis o que Heleieth Saffioti
denominou ideologia de gênero.
“(...) o gênero, embora construído socialmente, caminha junto com o sexo. Isto não
significa atentar somente para o contrato heterossexual. O exercício da
sexualidade é muito variado; isto, contudo, não impede que continuem existindo
imagens diferenciadas do feminino e do masculino. O patriarcado refere-se a
milênios da história mais próxima, nos quais se implantou uma hierarquia entre
homens e mulheres, com primazia masculina. Tratar esta realidade em termos
exclusivamente do conceito de gênero distrai a atenção do poder do patriarca,
em especial como homem/marido, “neutralizando” a exploração-dominação
masculina. Neste sentido, e contrariamente ao que afirma a maioria das(os)
teóricas(os), o conceito de gênero carrega uma dose apreciável de ideologia. E
qual é esta ideologia? Exatamente a patriarcal, forjada especialmente para dar
cobertura a uma estrutura de poder que situa as mulheres muito abaixo dos
homens em todas as áreas da convivência humana. É a esta estrutura de poder, e
não apenas à ideologia que a acoberta, que o conceito de patriarcado diz
respeito.” (SAFFIOTI, 2004, p. 136).
Como pode-se observar — para
a surpresa dos conservadores —, a ideologia de gênero não é nada do
que eles imaginam e reproduzem. E sim, de fato, o termo foi criado por uma
feminista. Mas imagino quem pode ter invocado o termo de forma pejorativa ao
PNE e à vinda de Judith Butler ao Brasil — conhecia Saffioti e estava mal
intencionado, ou inventou, num momento de devaneio, o termo porque achou que a
palavra “ideologia” antes da palavra “gênero” é sonora e fácil de falar?
ÍNDICE
BIBLIOGRÁFICO
BUTLER, Judith. Problemas
de Gênero – Feminismo e subversão da identidade. 1ª ed. Tradução de Renato
Aguiar. São Paulo: Civilização Brasileira, 2003.
CHAUÍ, Marilena. O que
é Ideologia. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2008. (Coleção Primeiros
Passos).
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã: Crítica da mais recente filosofia alemã em seus
representantes Fuerbach, Bruno Bauer e Max Stirner, e do socialismo alemão em
seus diferentes profetas (1845-1846). 1ª ed. Tradução de Rubens Enderle. São
Paulo: Boitempo Editorial, 2007.
SAFFIOTI, Heleieth. Gênero,
Patriarcado, Violência. 1ª ed. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004.
(Coleção Brasil Urgente).
Vinícius Siman
Escritor, diretor, crítico literário e militante dos direitos humanos. Tem nove livros publicados.
Escreve ao Ad Substantiam semanalmente às sextas-feiras.
Contato: souzasiman@gmail.com
Bravo,garoto.
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