Capitalismo como religião: A bizarra atualidade de um estranho texto de Walter Benjamin



Walter Benjamin (1892-1940) foi um filósofo alemão vinculado a escola de Frankfurt, que por volta de 1924 tornou-se um marxista ao ler a obra História e Consciência de Classe de Lukács, seu marxismo, porém, estava profundamente ligado a teoria crítica do grupo ao qual estava envolvido e com o qual produziu ativamente. É famoso seu trabalho sobre As Origens do Drama Trágico Alemão (1928) assim como Charles Baudelaire: Um Lírico no Auge do Capitalismo e A Arte na Época de sua Reprodutibilidade técnica (1936). Esse texto, especificamente, é um pequeno ensaio de sua fase pré-marxista, escrito em meados de 1921.
Capitalismo como Religião é um esquisito fragmento, direto ao ponto, sem preocupar-se com referenciais teóricos, é uma sucessão de proposições, pode-se dizer.

O Capitalismo deve ser visto como uma religião, isto é, o capitalismo está essencialmente a serviço da resolução das mesmas preocupações, aflições e inquietações a que outrora as assim chamadas  religiões quiseram oferecer resposta. (BENJAMIN, 2013, p.21)

Essas são as primeiras linhas do ensaio, podem soar esquisitas quando as lemos pela primeira vez, mas são bastante sensatas quando o deslocamos de seu caráter metafórico, proposta do presente texto. O que diferencia a sociedade capitalista dos tipos de sociedade que a precederam são, principalmente, dois elementos, o primeiro é a natureza do trabalho, como coloca Maurice Dobb (1977, p. 16).

O homem pré-capitalista era um homem “natural” que concebia a atividade econômica como o simples aprovisionamento de suas necessidades naturais e em épocas pré-capitalistas “no centro de todo esforço e preocupação estava o homem, medida de todas as coisas, mensura omnium rerum homo”. Por contraste o capitalista, “desarraigando o homem natural, com sua visão “primitiva e original” e “revirando todos os valores da vida”, vê na acumulação de capital o motivo dominante da atividade econômica, e numa atitude de racionalidade sóbria e através dos métodos de cálculo quantitativo preciso subordina tudo o mais na vida a esse fim.

O segundo vem atrelado a esse, Dobb (1977, p. 17) continua:

A sociedade medieval se caracterizava pela execução obrigatória do trabalho excedente pelos produtores, que se achavam na posse de seus próprios instrumentos primitivos de cultivo e estavam ligados  à terra. A sociedade moderna, por contraste, se caracteriza por uma relação entre o trabalhador e o capitalista, que toma uma forma ouramente contratual e se monstra indistinguível , em aparência, de qualquer das outras transações múltiplas de mercado livre de uma sociedade de trocas.

A sociedade deixa de ser “com” mercado, marcada por uma ideia de trabalho ligada a subsistência mais do que a produção e apropriação do excedente e passa a ser uma sociedade “de” mercado, onde todas as relações são perpassadas pela produção, o trabalho transforma-se em mercadoria, a religião sai do centro da normatização da sociedade e constrói-se, em seu lugar, um sistema jurídico que abstrai a realidade das relações de mercado e suas formas, que regulam essa sociedade de contradições, onde uns devem nada ter para vender sua força de trabalho, Pachukanis (2017, p. 118) coloca: “O trabalhador assalariado surge no mercado como um livre vendedor de sua força de trabalho porque a relação capitalista de exploração é mediada pela forma jurídica do contrato.”. Assim, gradativamente, o excedente passa a importar mais do que a própria produção para subsistência, onde “A riqueza das sociedades onde reina o modo de produção capitalista aparece como uma “enorme coleção de mercadorias” (MARX, 2013, p.113).
A “forma-valor” passa a ser a das relações sociais, integra-se as formas de poder em todos os níveis, validando-se e sendo regulada pela “forma jurídica”. Assim, o capitalismo é uma enorme abstração, onde a produção não se dá para as pessoas, mas para o mercado, não importa a quantidade de mercadorias que irão para o lixo no final, o importante é que o lucro do capital volte. Marx e Engels (2007, p. 50), apesar do caráter panfletário, são felizes ao descrever, no Manifesto Comunista, os impactos da padronização que o mercado impõe, por meio de padrões de consumo, nas sociedades.

Onde quer que tenha conquistado o poder, a burguesia destruiu todas as relações feudais, patriarcais, idílicas. Dilacerou sem piedade todos os complexos e variados laços que uniam o homem feudal a seus superiores naturais para não deixar subsistir, entre homem e homem, outro vínculo senão o frio interesse, as duras exigências do “pagamento em dinheiro”. Afogou os sagrados frêmitos do êxtase religioso, do entusiasmo cavalheiresco, do sentimento pequeno-burguês nas águas geladas do cálculo egoísta. Fez da dignidade humana um simples valor de troca e, no lugar das inúmeras liberdades tão duramente conquistadas, implantou a única e liberdade igualdade do comércio. Numa palavras, em lugar da exploração que as ilusões políticas e religiosas mascaravam, implantou uma exploração aberta, despudorada, direta e brutal.

A liberdade, no capitalismo, é uma liberdade comercial, os indivíduos são livres, pois são possuidores de sua força de trabalho para vender, a liberdade de ir e vir é fruto da necessidade burguesa de superar as fronteiras que limitavam o escoamento da produção no Século XVIII, não se pode negar os méritos dessas conquistas, é verdade, mas é seu lado nefasto, voltado a produção e ao trabalho para essa gigante abstração chamada mercado, que persiste. Na metáfora de Benjamin, essas relações aparecem da seguinte forma (2013, p. 21):

Em primeiro lugar, o capitalismo é uma religião puramente cultual, talvez até a mais extremada que já existiu. Nele, todas as coisas só adquirem significado na relação imediata com o culto; ele não possui nenhuma dogmática e nenhuma teologia. Sob esse aspecto, o utilitarismo obtém sua coloração religiosa.

A esse mercado nós só contribuímos, em todas as nossas relações diárias, em nossas necessidades cotidianas, na mesa ao vaso sanitário, tudo é um produto, perpassados pela forma-valor, que dá sentido as coisas e as atitudes, que só fazem sentido dentro desta lógica. O consumo teria gerado um sentimento de constante culpa, que é a “expansão do desespero ao estado religioso universal, do qual se esperaria a salvação” (BENJAMIN, 2013, p. 22), mas não há salvação, só a continuação constante de sua reprodução, que fazemos diariamente para essa religião “puramente cultual”.
O caráter fetichista da religião, não mais o centro da sociedade, tampouco a medida das coisas em nossa época, é substituído pelo fetichismo do capital, pelo “algo mais” que os produtos carregam em sua materialidade, por seu status, vivemos para obter essas “relíquias” e pela manutenção desse mercado e suas regras, um mercado cada vez mais abstrato, monetizado, especulativo, mais e mais distante do indivíduo comum pela complexa linguagens das bolsas de valores e taxas de juro, que tem a alienação de seu trabalho acentuada, haja visto que o produto de seu trabalho, que se desfaz, se fragmenta em dinheiro, créditos, ações e dividendos, torna-se ininteligível.
O discurso liberal é reproduzido em todas as relações de poder da sociedade, inclusive a escola. No Brasil pós-1988, as Diretrizes Curriculares Nacionais do ensino médio, que fornecem “os nortes” para planos nacionais, leis que serão emendadas a constituição e a LBD (Leis de Diretrizes e Bases) fortalecem os interesses do mercado, em sua versão neoliberal, propagando seu “catecismo”, onde:
 “restringe-se a concepção de trabalho à sua forma na produção capitalista, em última instância propõe a formação de um exército de reserva, altamente adaptável as situações de exploração. Reduzir a compreensão da categoria trabalho a ocupação, produção de bens e serviços, tarefas laborais, significa desconsiderar o caráter ontológico do trabalho humano.” (BRUEL, 2012, p. 192).

Logo, perde o sentido aqueles que dizem que a educação não deve ser ideológica. Ora, em suas diretrizes nacionais são dadas prioridades ao modus operandi da educação brasileira, que deve preparar os jovens para que suas habilidades, suas identidades e suas personalidades sejam adaptáveis aos interesses do mercado, cada vez mais voraz, rápido e globalizado. A ideologia está estruturalmente nela, o discurso neoliberal deve, prioritariamente ser reproduzido em todas as relações de poder da escola, os discursos discordantes devem, então, ser lançados para aquele lugar de exclusão do qual Foucault nos fala (2014, p. 8-9):

“suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e retribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade. Em uma sociedade como a nossa, conhecemos, é certo, procedimentos de exclusão.”.

Assim, onipresente, estrutural em toda a teia de relações de poderes da sociedade, em discursos que se materializam em práticas, nas contradições da realidade social, verticalmente e horizontalmente, o mercado se estabelece e se perpetua. O texto de Walter Benjamin é uma interessante metáfora, onde os trabalhadores servem a uma entidade que não entendem muito bem, mas sentem seu poder, e os capitalistas servem a essa divindade, o mercado, produzindo para ela através da exploração do trabalho da classe trabalhadora, que é “livre” de capital e não lhe resta outro caminho, senão vender sua força de trabalho. 




Bibliografia

BENJAMIN, Walter. O Capitalismo como religião. 1ª ed. Boitempo Editorial, São Paulo, 2013.
BRUEL, Ana Lorena de Oliveira. Políticas e Legislação da educação básica no Brasil. 1ª ed. Editora Intersaberes, Curitiba, 2012.
DOBB, Maurice. A Evolução do Capitalismo. 6ª ed. Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1977.
ENGELS, Friedrich, MARX, Karl. O Manifesto do Partido Comunista. 1ª ed. Editora Escala, São Paulo, 2007.
FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. 24ª ed. Edições Loyota, São Paulo, 2014.
MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política Volume I: O processo de produção do capital. 1ª ed. Boitempo Editorial, São Paulo, 2013.
PACHUKANIS, Evguiéni. Teoria Geral do Direito e Marxismo. 1ª ed. Boitempo Editorial, São Paulo, 2017.




SUED

Nome artístico de Línik Sued Carvalho da Mota, é romancista, novelista, cronista e contista, tendo dois livros publicados, também é graduanda em História pela Universidade Regional do Cariri. Militante comunista, acredita no radicalismo das lutas e no estudo profundo de política, sociologia, História e economia como essenciais para uma militância útil.
Escreve ao Ad Substantiam semanalmente às segundas-feiras.
Contato: lscarvalho160@gmail.com




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