ACINTE AO ÓDIO


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Foto do autor (chão de ipê roxo). 

Com a exata cor de rósea rosa nasceu José Aparecido de Carvalho na aurora de quinze de agosto de mil novecentos e noventa e um – Dormição de Maria. A família de Cidinho é a mais legítima família renovada carismática católica do Cariru, Ipatinga. Lá tudo é caro e o pessoal do poluído bairro se sente o escolhido de Deus por ser de bairro metido a nobr... digo, meio nobre de quem é da grande fábrica de aço bruto; se é certo ou não a santidade do bairro, não importa. Mas o fato é que Maria sorriu para o menino com uma lágrima.
Com a exata cor de canela nasceu Mário Gabriel de Menezes no crepúsculo de oito de dezembro de mil novecentos e noventa e dois – Imaculada Conceição de Maria. A família de Biel é do Cidade Nobre, Ipatinga. É o bairro nobre de quem não é da grande fábrica de aço bruto. E é quase tão legítima família renovada carismática. Apenas quase; dona Conceição, a mãe de Biel, é mulata pouco beata e filha de uma mãe de santo no Bethânia. Mas tudo isso pouco importa, pois o fato é que Maria sorriu com uma lágrima para o menino.
Em sete de fevereiro de dois mil e cinco, Cidinho e Biel começaram os estudos na mesma turma do São Francisco. No ano anterior o róseo menino sofreu um acidente que lhe comeu muitos meses, mas as novenas da comunidade múltiplas caras o salvaram. Será? Não creio, mas o sorriso lacrimal de Maria não falhou e com este pequeno atraso escolar os dois se conheceram.
Em doze de outubro de dois mil e dez, o feminino visível de um e de outro aflorou e se defloraram mulheres. Não vou dizer “para desgosto de suas famílias” porque não preciso. Quem me lê não é boçalnaro.
Cidinho se denominou Maria dos Prazeres Aparecidos. E Biel se chamou Maria Catarina Aparecida. Ambos por gratidão à Santa Madrinha que sempre lhes sorrira em lágrimas. Maria dos Prazeres Aparecidos, também porque sempre buscara na Virgem e dela conseguiu coragem para enfrentar os martírios da vida. Maria Catarina Aparecida também por causa da materna avó guerreira que brilhava sua pele.
Juntas se mudaram para o Parque das Águas; dois quartinhos, uma salinha, uma cozinha, um banheirinho, um quintalzinho e jardinzinho. A poucas quadras da casa de Macabéia e Geraldo.
As duas travestis eram garotas de programa na BR 381. Em casa e na rua se cuidavam mutuamente. Mas se a fome de comer mostra os ossos; a fome de respeito marca a cara. “As rugas faziam sulcos em suas faces sofridas.”.
Aos quase cinquenta e três Macabéia morreu. Geraldo foi à casa de Mariana, mãe de Hugo, que não foi ao enterro de Macabéia. Mas não tem problema. Foram todas as suas amigas da noite e de costura. Menos Prazeres e Catarina. Estavam internadas por espancamentos sofridos dias antes.
Dias depois, já em casa, foram visitar o amigo. Fizeram comovida prece à Mãe Santíssima que aos três sorrira com suas lágrimas; uma caída sobre a face da amada filha Macabéia.
Muito tempo se passou. Após uma seca semana de luta, sem conseguir nem um cliente sequer, decidiram voltar aos velhos tempos. Lamberam-se, dedilharam-se, beijaram-se. Cata comia Prazeres, e vice-versa. Prazeres era mais bem-dotada; Cata gemia de torpor. Foi bom.
Amanheceu.
Prazeres acordou primeiro, fez café, tomou, deixou a mesa arrumada e um bilhete: “Cata, vou à feira. Volto antes do almoço. Beijoca, Prazeres.” Foi, mas não voltou.
Fora espancada pelos secos olhos cristãos e pela gargalhada de suas bocas.
Fora brutalmente espancada, mas nada sentira. Nem dor, nem ódio, nem medo. A Santa Mãe despiu seu manto e guardou sua alma de todo mal. Os úmidos olhos de Maria lhe deu força e seu suave sorriso lhe deu coragem de aceitar a mão que lhe conduziu aos braços do Santo Filho.
Catarina recolheu a amiga ensanguentada, roupas rasgadas, boca de vermelho-vinho para vermelho-sangue. Nem roxo viria depois... Tudo não passaria vermelho cruel.
No velório, Geraldo mais todas as amigas da noite.
Catarina pediu a Geraldo uma cruz de madeira com os dizeres nos braços: “Aqui jaz Maria das Dores.” E na vertical da cruz, em pequenas letras: “Surgiu quando morreu a Santa Mãe, nasceu comigo em N. Sra. Aparecida, morreu quando a Santa Mãe nasceu.”.
“É... Percebi que Maria deixou de ser dos Prazeres pra ser das Dores”.
Meses depois, não apenas uma semana, em Belo Horizonte, Catarina foi enterrada como indigente, sem nome de luta nem de batismo na cruz, porque não ter ninguém por si na grande região metropolitana.
Dizem que morreu de desgosto. Não sei... O que sei é que era oito de dezembro; seu aniversário de desvalida ou nascimento na morte. O que sei é que Prazeres a recebera de braços abertos sob o sorriso ensolarado da Santa Mãe.


Ofereço este cronto como presente de aniversário a Erikis M. Sena.
E ofereço a todos que valoram a diversidade.

 Rubem Leite é escritor, poeta e crontista. Escreve ao Ad Substantiam semanalmente às quintas-feiras; e todo domingo no seu blog literário: aRTISTA aRTEIRO.  É professor de Português, Literatura, Espanhol e Artes. É graduado em Letras-Português. É pós-graduado em “Metodologias do Ensino da Língua Portuguesa e Literatura na Educação Básica”, “Ensino de Língua Espanhola”, “Ensino de Artes” e “Cultura e Literatura”; autor dos artigos científicos “Machado de Assis e o Discurso Presente em Suas Obras”, “Brasil e Sua Literatura no Mundo – Literatura Brasileira em Países de Língua Espanhola, Como é Vista?”, “Amadurecimento da Criação – A Arte da Inspiração do Artista” e “Leitura de Cultura da Cultura de Leitura”. É, por segunda gestão, Secretário da ASSABI – Associação de Amigos da Biblioteca Pública Zumbi dos Palmares (Ipatinga MG). Foi, por duas gestões, Conselheiro Municipal de Cultura em Ipatinga MG (representando a Literatura).


Escrito entre 08 e 21 de setembro de 2017.

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