Desintoxicação Forçada




Enquanto mastigava um pedaço de pão que havia molhado no leite, a fechadura fez aquele barulho característico, de quando a chave é girada, Jeferson olha para a porta e estranha:
–  Ora, ninguém sequer vem aqui, avalie ter a chave.
A maçaneta girou, a porta abriu, a surpresa foi tamanha que Jeferson derruba o pão que segura em seu colo, que ficou todo sujo de cascas.
Um médico atravessa a porta, de jaleco e tudo.
–  Com licença, desculpe o atraso, o trânsito estava igual tripa de velho com prisão de ventre... Rapaz, aquilo não andava.
–  Mas você, quem é? Isso é alguma piada? – Retruca Jeferson, um tanto alterado.
A porta bate.
– Ora, seu problema é muito sério, pode ser contagioso. – Coloca o médico, puxando a cadeira e sentando-se a mesa, de frente para Jeferson.
– Não sinto nada. – Responde Jeferson.
– Negação é o primeiro obstáculo. – Responde o médico, apertando o botão de uma caneta e anotando no papel.
– Negação? Não estou doente, sinto-me muito bem.
– Seus vizinhos tem medo de seu problema.
– PROBLEMA?! – Coloca Jeferson, exaltando-se e levantando da cadeira no calor do momento.
– Sim, você está viciado em sua própria casa. – Responde o médico calmamente, sempre anotando em um bloco.
– Viciado em minha casa?!
– Ora, sim, seus vizinhos o temem, dizem que não sai, que não dança, não curte a vida... Dizem que chega em casa do trabalho, fecha a porta e fica aqui e, no final de semana, tranca-se aqui todo o tempo. O vício é nocivo e está afetando  as pessoas que te rodeiam.
– Eu me sinto bem aqui, ora!
– Sei que o efeito é bom, mas não seja egoísta, é preciso viver em sociedade...
– Eu vivo em sociedade, só gosto de ficar na minha, no espaço que posso controlar.
– Uhum, esse seu vício gera sua mania por controle.
– Mas o que?
– Negação mais uma vez. – Afirma o médico, pondo na ponta do papel.
– Seus amigos, suas amigas, já fizeram intervenção com você, que não muda.
– Eu não quero mudar! – Exclama Jeferson, batendo na mesa.
– Bem, então terá de ser desintoxicado, se tornou uma ameaça a sociedade.
– O que?!
– Rapazes!
A porta se abre mais uma vez e dois brutamontes entram, rodeiam a mesa e seguram Jeferson pelos braços, que se chacoalha, se bate, mas não se equipara a força dos dois, eles o levantam e o jogam na calçada, através da porta. Atrás dele a porta se fecha. Jeferson corre até a porta fechada, a empurra, gira e puxa a maçaneta, mas está trancada.
– ABRAM A PORTA! – Grita, confuso e desesperado.
Em vão, a porta permanece fechada...
Jeferson vira-se, depara-se com um número absurdo de transeuntes, indo e vindo, sem preocupar-se uns com os outros, vivendo em suas próprias cabeças.
Jeferson começa a suar, suas mãos tremem.

“Desintoxicação” forçada.



SUED

Nome artístico de Línik Sued Carvalho da Mota, é romancista, novelista, cronista e contista, tendo dois livros publicados, também é graduanda em História pela Universidade Regional do Cariri. Militante comunista, acredita no radicalismo das lutas e no estudo profundo de política, sociologia, História e economia como essenciais para uma militância útil.
Escreve ao Ad Substantiam semanalmente às segundas-feiras.
Contato: lscarvalho160@gmail.com










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