Entre a espiritualidade e a batata frita eu escolho a batata frita



Texto originalmente publicado em minha coletânea "17 contos sobre a impotência do indivíduo" (2016)

Aprender a dizer não é, talvez, uma das coisas mais importantes a se aprender, não apenas falar “não”, mas ser convicta o suficiente na negativa a ponto de se livrar de determinadas situações sem a necessidade de ser grosseira. Um “não” grosseiro demonstra a mesma insegurança que um não tímido, é apenas mais intenso, isso claro, em situações cotidianas.
Uma das piores situações que uma indivídua que não sabe dizer não pode se envolver é ser abordada na rua por um vendedor muito bom, tão hábil na arte de vender que é capaz de te fazer comprar algo que não precisa ou nunca pensou em comprar. Eu me envolvi em uma situação assim num certo domingo, com um certo tipo de vendedor que tem chovido por aqui, o vendedor de miçangas, objetos que insistem em chamar de “arte”.
Naquele domingo eu tinha viajado para a casa de minha mãe, que mora em outra cidade, tinha me esforçado, com êxito, em gastar apenas o dinheiro da passagem. Eu e minha namorada tínhamos voltado para nossa cidade e decidimos passar um tempo na praça próxima ao terminal, normalmente bastante movimentada aos domingos. Ocupamos um banco e ficamos a conversar.
Passamos algum tempo ali, observei algumas pessoas com douradas batatas palito fritas, isso chamou minha atenção, é como se eu pudesse sentir o cheiro da fritura, quase senti o óleo molhando os meus dedos. Fui tomada de uma vontade tremenda de comer algumas batatas com maionese temperada. Pus a mão em meu bolso e tirei de lá uma nota de dois reais e algumas moedas, passei a contar os centavos com expectativa.
– Tenho cinco reais! – Exclamei, entusiasmada.
– Pra quê? – Perguntou minha namorada, surpreendida pelo meu ânimo repentino.
– Comprar batata frita, quer?
– Mas nós comemos tanto na casa de sua mãe, minha barriga parece que vai explodir. – Afirmou ela, dando batidinhas na área.
– Eu quero.
– Menina, onde você vai colocar essas batatas?
– Sei lá, mas estou morrendo de vontade.
– E você está grávida, é?
– Só se for das almas.
Levantei, peguei-a pela mão, convidando-a a levantar, levantamos e caminhamos animadamente, embora eu tenha tido que soltar sua mão em determinado ponto, pois a praça estava cheia. Quando estávamos a apenas alguns metros da banca, quando eu podia ouvir o som do óleo quente a borbulhar. Assim tão próxima, ouvi um grito:
– Ei!
De início fiquei parada, olho em volta, não percebendo se a exclamação foi direcionada a mim. Vejo um rapaz de roupas coloridas e sujas, barba por fazer e cabelo tererê. Me preparo para dar outro passo, mas mais uma vez sou chamada, olho para minha namorada e ela olha de volta, in extremis. O homem move o braço me chamando para lá. Nós caminhamos até o local, eu estava um pouco sem jeito, minha namorada, menos tímida, reage normalmente.
– E ai, moças. – Ele apertou minha mão com força, talvez por eu estar usando “roupas masculinas”. – Quer dar uma olhada nas artes? – Conclui ele apontando para baixo.
Olho para baixo e vejo uma moça com uma colorida roupa surrada, calça verde e sandália de couro sentada no chão, as “artes” estão sobre um pano no chão, ela olha para nós e sorri, começam a mostrar algumas peças, que nada mais são do que pedras amarradas a colares.
– Vocês são amigas? – Perguntou o vendedor.
– Somos namoradas. – Respondeu minha namorada.
– Ah, então você é o “homem” da relação. – Disse o vendedor sorrindo a apertar meu braço, sinto um bafo de cachaça.
– Não vai comprar nada para sua namorada? – Perguntou a vendedora, de seu assento no chão.
– É pra gente comprar uma janta para as crianças. Não quer dar uma ajuda, não? – O vendedor foi para a minha frente e olhou para a minha camisa, que tem a capa do álbum Diamond Dogs, do David Bowie, estampado. – Eita, tu parece demais, mesmo sendo mulher.
– É, ele teve uma fase andrógena. – Concordei mais por timidez do que por consenso.
– Não tira um som não? – Perguntou a vendedora, nota para seu acentuado sotaque paulistano de r puxado.
– Não, mas eu escrevo.
– Nada, moça, quando forem ler o que você escreve, tu já vai ter é morrido. – Afirmou o vendedor, enquanto eu me sinto um tanto bombardeada.
Minha namorada permaneceu em silêncio, talvez por estar achando a situação bastante cômica, até que a vendedora chama sua atenção:
– Qual teu nome? – Perguntou ela.
– É A.
– Ah, A., não gostou de nenhum não?
– E ai, vai querer ajudar? – Perguntou o vendedor, me empurrando ao papel de “macho provedor” por eu ser uma lésbica vestida de uma forma tida como “masculina”.
 Minha namorada apontou para um, que tem uma rocha avermelhada presa a um cordão.
– Esse é do signo de aries. Qual seu signo? – Perguntou a vendedora. Perceba o tom místico que a neohippie atribui ao objeto, propondo que o consumidos irá adquirir não apenas uma pedra vermelha amarrada, mas uma simbologia espiritualista, um objeto lúdico que conecta o visível e palpável a uma dimensão espiritual. Aqueles que não creem em coincidências caem facilmente.
– Não acredito em astrologia.
– Ah não? – Perguntou retoricamente a vendedora, minha namorada quebrou a estratégia.
– Pô, mas não quer dar uma fora ai não? – Me questionou o vendedor, em socorro da sua parceira, cuja estratégia falhou.
– Quanto é o colar? – Perguntei, querendo sair dali sem ser grossa, a estratégia adotada pelo vendedor consiste em testar minha generosidade, trabalhar a relação mercantil maquiada de caridade. Eu fui fisgada por essa, nesse momento estou na rede.
– Quarenta reais. – Respondeu o vendedor.
– QUARENTA?! PUTA QUE PARIU! – Respondi, surpresa, essa pedrinha amarrada definitivamente não vale nem dois reais.
– Porra, mas é só pela força. – Colocou o vendedor, reassumindo o tom de pedido de caridade, percebeu que a surpresa do preço poderia me tirar da rede.
– Quarenta reais não tenho como te dar.
– Vamos fazer assim, vinte reais. – Barganhou ele.
– Nem isso.
– Porra, vai deixar de apoiar nossa arte mesmo?
– Cara, é que eu realmente não tenho esse dinheiro aqui,
– E quanto tu tem ai? – Perguntou a vendedora.
– Cinco. – Afirmei, tomada de tristeza.
– Tá, deixo por dez. – Intercalou o vendedor.
– Eu só tenho cinco. – Reafirmei, um tanto incomodada.
– Vai deixar de presentear sua namorada mesmo? – Responde um vendedor, manifestando uma curva em sua tática, a de testar a força de um sentimento, a chamada “boa vontade”, um tanto diferente da “caridade”.
– Cara, não tenho esse dinheiro!
– Fica pelos cinco, então, gostei de vocês. Acho que merecem. – Afirmou, simpática, a vendedora, percebendo que eu, de fato, só tinha cinco reais. Como as miçangas não tem preço estabelecido e nem de longe valem algo acima de R$ 1,50, eles sugerem valores e criam estratégias para deixar o produto mais caro, como espiritualizar a “arte” ou levar a compra para um lado de “caridade”.
– Mas depois você traz os cinco que ficaram faltando, não é, minha irmãzinha Bowie.
– Trago, trago. – Confirmei, escondendo minha insatisfação.
Pago, minha namorada pega o colar. As batatas fritas ficaram pra outro dia, pois contribui com a ilusão pequeno burguesa de sociedade alternativa de lógica simultânea dos neohippies, essa subversão baseada em um niilismo ingênuo de décadent, não porque eu quis, mas porque se essas pessoas sabem praticar alguma arte de verdade, essa é a arte de vender, enquanto eu não dominava a arte de “dizer não”.
Minha namorada riu bastante da situação e eu também fui, aos poucos, vendo o lado cômico da coisa.

Não voltei na praça por um bom tempo, não queria ter “os cinco que sobraram” cobrados, espero que esse dinheiro não faça falta na compra da próxima cachaça pra eles, sinceramente.


SUED

Nome artístico de Línik Sued Carvalho da Mota, é romancista, novelista, cronista e contista, tendo dois livros publicados, também é graduanda em História pela Universidade Regional do Cariri. Militante comunista, acredita no radicalismo das lutas e no estudo profundo de política, sociologia, História e economia como essenciais para uma militância útil.
Escreve ao Ad Substantiam semanalmente às segundas-feiras.
Contato: lscarvalho160@gmail.com







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