Triste história dum artista livre

Há mais ou menos um ano atrás, nestas noites de sábado em que jovens bebem e se drogam em praça pública, conheci um artista de rua, da rua, na rua. Chamava-se Raúl, um argentino extrovertido e completamente louco. Logo me encantei; gosto de gente diferente. Perguntei se conhecia Fito Páez, ele disse que sim, e começamos a cantar "Un vestido y un amor" em voz alta, pro espanto de muitos dos que nos acompanhavam naquela noite.
Desde então, Raúl e eu nos encontrávamos sempre ao acaso, oferecia-o um cigarro, ele aceitava sempre mais de um, conversávamos um pouco... eu me atrasava pros meus compromissos mas não abria mão de conversar com ele. Num desses encontros, Raúl disse da sua fascinação por lixo; sempre vasculha todas as latas de lixo que vê à procura de qualquer coisa. Disse-me que uma vez encontrou um pedaço duma flauta doce e, numa outra lata a poucos metros, o outro pedaço da flauta. Montou-a e saiu tocando seu concerto rua afora. Alguns paravam, observavam, diziam-lhe "louco! louco! louco!" e ele continuava, indiferente à opinião pública, a tocar aquela melodia que não ouvi, mas imaginei ouvir quando me contou.
Há algumas semanas, encontrei Raúl andando de bicicleta pela Av. Minas Gerais; nos paramos, conversamos e Raúl disse-me que iria embora pro sul da Bahia, porque Ipatinga não dá lucro nem valor à arte, que fazer malabarismo com fogo em cima dum monociclo num sinal não chama mais a atenção das pessoas e que Ipatinga é a cidade mais segregadora que já viu — "e olhe que já vi muitas!", completou.
Quase chorando, Raúl disse que eu não podia aceitar que o governo fizesse o que quisesse comigo, que ser submisso não era papel de artista e que os deuses que possam existir iluminem meus passos nesta terra; disse-lhe o mesmo. Um aperto de mãos, um abraço, um beijo e as lágrimas trocando de rosto.
Desde então, o Raúl que achava que iria embora nunca mais me parou no meio da rua pra me pedir cigarros ou atenção ou que cantasse as músicas de Fito com ele. Livre que é, Raúl voou!



Vinícius Siman

Escritor, diretor, crítico de arte e militante dos direitos humanos. Tem nove livros publicados.
Escreve ao Ad Substantiam semanalmente às sextas-feiras.
Contato: souzasiman@gmail.com

Comentários

Postagens mais visitadas