Doutrinação e Totalitarismo
Muito
tem se falado sobre doutrinação ultimamente e, infelizmente, tem sido um debate
marcado por maus usos do termo e diversas confusões. É importante salientar,
antes de tudo, que os termos e nomes as vezes carregam não apenas significados,
mas conceitos, e doutrinação carrega não apenas um conceito, mas um modus
operandi, um modo de agir que a diferencia das outras formas de passar uma
mensagem. Quando se fala em doutrinação é importante ter em mente que modus
operandi é este.
Antes
de começar a definir o modus operandi e o conceito de doutrinação, lançarei um
problema para exemplificar o tom que assumirei nos próximos parágrafos, no
último eu responderei ao problema lançado nestes dois primeiros parágrafos
introdutórios. Imagine-se em uma Universidade, em uma faculdade de História,
por exemplo, o professor tem uma veia mais materialista (No vocabulário
historiográfico “materialismo” é sinônimo de marxismo), seu mestrado e
doutorado foram nas áreas de História Social e este professor, que é doutor e
especialista em um domínio da História, discute com os alunos apenas textos marxistas,
nunca dando um contra ponto. Este professor está praticando Doutrinação?
Já
tenho minha resposta pronta e já poderia dá-la aqui mesmo, e, antes de
continuar, devo avisar aos desonestos praticantes do ad hominem que não sou marxista, sou da História da Leitura, esse é
o meu campo de pesquisa, dito isso, vamos começar. Bem, doutrinar e educar tem
um fim: Condicionar o sujeito a uma condição, direta ou indiretamente. A educação formal na escola, por exemplo, visa (Em teoria) preparar o indivíduo
para a vida em sociedade e suas complexidades éticas e morais, a doutrinação
tem basicamente o mesmo fim, preparar o indivíduo para a práticas de algumas
formas de ética e moralidade. O que muda, então? Bem, os fins e o modus operandi. Como assim?
Enquanto
a educação procura condicionar o indivíduo por meio da compreensão e do ensino
lógico, embasado em metodologias didáticas testadas que visam a construção dos
sujeitos levando em conta seus potenciais diversos e suas particularidades, a
doutrinação vai no caminho oposto, procura tornar o heterogêneo em homogêneo,
criar proibições implícitas e instalar uma repressão existencial sobre o ego.
Repressão existencial? Sim, a doutrinação é totalitária. O totalitarismo é uma
forma de lógica de pensamento e visão de mundo que cria mecanismos de controle
que criam nos entes um medo de se contrapor, não apenas devido à repressão
física, mas um medo de ir contra uma causa. O totalitarismo lança um conceito
de verdade uno e um ideal perfeito a ser alcançado, até nos aspectos
mais pessoais da vida: procura incitar uma conduta sexual, uma forma de agir,
vestir e se comportar que remeta sempre a construção desse ideal coletivo no
coração do ente. Poderia recorrer aos clássicos do totalitarismo e, por
consequência, da doutrinação que encontramos na História do Século XX, como o Nazismo, onde
os alemães se viam levados a perseguir um ideal de homens e mulheres arianos e
sua vida em todos os aspectos devia ser marcada pelo desejo de somar a esse
ideal, que dava sentido aos acasos da existência, porém, prefiro me ater a um
exemplo mais próximo, o cristianismo.
Uma
criança, levada ao catecismo, ensinada, na infância, que a vida na Terra e a
realidade têm um sentido, que a História tem um fim, que existe um “homem ideal”
e uma “mulher ideal” bem definidos a serem buscados e uma forma de viver “para
Deus”. Mas tais coisas não são apenas ensinadas, cria-se toda uma estrutura
psicológica de repressão existencial que persegue o indivíduo até quando se
encontra entre quatro paredes, como a ideia de inferno e o conceito de que Deus
está “olhado a todo momento”, além do desencorajamento as críticas, como o
postulado de que essa causa é inquestionável por estar na “palavra sagrada” e
que questionar a Deus é um pecado contra
o espírito. Isso é doutrinação, um esmagamento do senso crítico individual por
meio de um ensino unilateral acompanhado de formas de repressão existencial que
seguem o indivíduo em todos os aspectos de sua vida. Totalitarismo e doutrinação
são indissociáveis.
Certo,
mas e nosso professor do exemplo dado mais acima? Estaria cometendo
doutrinação? Bem, importante salientar que o campo da História, tal qual
qualquer outra área do conhecimento, é dono de uma amplitude de muitos temas e
especificidades, cheio de domínios, categorias, gêneros e abordagens. Logo, é
de se esperar que um Historiador marxista seja especializado em uma metodologia
específica e, devido a amplitude desta, acabe sempre tendendo para este lado,
afinal, o que os acadêmicos vivem a fazer é “defender teses”, ou seja, um
historiador marxista defenderá sim seu método e sempre focará neste em suas
aulas. Normal e nada de errado nisso, pois não é doutrinação marxista. Por que?
Bem, primeiro, de qual marxismo falamos? Do clássico, do próprio Marx e seu
amigo Engels? Ou do de Edward Palmer Thompson? Ou do de Eric Hobsbawn? Ou Lukács?
Nem sempre, por incrível que pareça, se fala diretamente de Marx quando se cita
Marxismo, é um campo rico e amplo, e olha que nem sou da área, sou uma
observadora externa. Segundo, o professor marxista (Seu método de pesquisa, sua
especialidade, a lente que usa para analisar os acontecimentos históricos e
relaciona-los ao presente) não usa da lógica totalitária inerente a doutrinação
quando ensina a seus alunos, eles são livres para, fora dali, procurarem outros
teóricos, outras linhas de pensamento, sem sentirem que estão traindo um grande
destino humano e um grande ideal de homem e mulher perfeitos (Colocando aqui o
exemplo de doutrinação que uso para comparação aqui) e levarem a discussão a
sala de aula. No momento que os professores imporem com sucesso a visão
marxista a seus alunos até nos campos mais pessoais de suas vidas eles estarão
doutrinando, enquanto não se chegar a esse ponto não se pode falar em
doutrinar, pois esse exercício (da doutrinação) envolve desencorajar o senso
crítico por meio de um medo existencial, como fazem as grandes religiões, por
exemplo.
Logo
é uma desonesto afirmar que um professor, por só ministrar aulas a partir
de uma visão de mundo, é doutrinador, ele é no máximo parcial ou focado demais
apenas na sua área, e até esses rótulos são discutíveis.
Obs - Sobre totalitarismo e os usos da
doutrinação em massa, recomendo o clássico “Origens do Totalitarismo” da
filósofa alemã Hannah Arendt, especificamente o capítulo 2 da Parte III chamado "O Movimento Totalitário".
SUED
Nome artístico de Línik Sued Carvalho da Mota, é romancista e contista, tendo dois livros publicados, também é graduanda em História pela Universidade Regional do Cariri. Militante comunista, acredita no radicalismo das lutas e no estudo profundo de política, sociologia, História e economia como essenciais para uma militância útil.
Escreve ao Ad Substantiam semanalmente às segundas-feiras.
Contato: lscarvalho160@gmail.com
Escreve ao Ad Substantiam semanalmente às segundas-feiras.
Contato: lscarvalho160@gmail.com
parabéns pelo texto, Sued!! XD
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