Diálogos: Deus e a puta


- Quero morrer.
- Por que minha filha?
- Porque não aguento mais essa vida noturna... me sinto como uma peça de carne exposta no açougue.
- Mas tu escolheste esta vida... lembra-te quando, ao invés de estudar, estavas vendendo beijinhos por moedas atrás da escola? Mas era culpa da …
- Não!!! Não culpes ninguém pelos erros que cometeste minha filha. Sempre lhe dei os dois caminhos e preferiste ficar com o pior a grande maioria das vezes.
- O Senhor não entende... não fiz escolhas... fui escolhida. A sociedade não me deu oportunidades, sou preta, pobre e puta...
- Escolhida por quem?
- Pela vida. Pelo destino. Pelas linhas tortas que tu escreveste. Pelas margens da sociedade.
- Agora a culpa é minha? Escrevi, mas como te disse sempre dando-lhe dois caminhos, inclusive agora, se quiser pode morrer, mas se quiser também podes viver e sair desta vida, será uma morte de todo jeito, mas para vidas diferentes...
- Não vejo como sair dessa vida...diga-me?
- Não sei também... não tenho todas as respostas como imaginas...
- Sei que não as tem, pois do contrário não estaria aqui nesse beco, vestido com essa roupa imunda e aquecido apenas por esta garrafa de aguardente.
- Quer o que? Pensa que também não sofro de crises existenciais? De depressão? De desgosto? Olhe a sua volta... preste atenção em tudo que eu criei... veja o que fizeram... nada mais resta...
- A mim também... nada mais resta, nem a dignidade, por isso quero morrer...
- Pensa que também não sinto essa vontade? Mas não tenho esse privilégio... e não deveria tê-lo dado a vocês.
- Então também não devia ter inventado a reprodução, assim teria evitado muitos dos sentimentos oblíquos que o homem desenvolveu.
- Pronto mulher! Agora queres me culpar por todos os erros que já se cometeram nesse chão.
- Não te dizem como o onipresente, o onipotente... então estavas a par de tudo e consentiu, se consentiu és culpado...
- O que querias que eu fizesse? O que farias tu em meu lugar?
- Não sei. Nunca tive poder em minha vida...
- Achas que sou poderoso? Sou fraco diante de tanta prepotência, cada vez que o homem brincou de adquirir meus poderes enfraqueci, é como vós insistes em dizer, o discípulo superá o mestre... e o meu poder foi se esvaindo diante de tanta superação...
- Você sabia que isso aconteceria, podia prever...
- Não sabes como blasfema... quando os fiz... fiz a minha imagem e semelhança, não só física, mas também reproduzi minhas fraquezas, meus medos, minhas virtudes e meus desejos, sabendo que isso se diversificaria ao longo dos tempos...
- Então já podia prever onde tudo daria...
- Jamais, só podia prever que isso sairia do meu controle, mas achei que para o lado em que poderiam conduzir tudo sozinhos, eu seria mero espectador, e nunca imaginei que tamanha variedade pudesse refletir um lado meu que eu não conhecia, impiedade, amargura, raiva... sentimentos propriamente meus que só degustei ao se manifestarem em vocês...
- Então não atribui a maldade e seus afluentes a seu inimigo...
- Não, pois definitivamente assim como eu, ele passou a ser marionete na mão de vocês, aliás, ele nunca existiu é só projeto de minha doutrina, algo que tentei para impor certo controle, que acabou se virando contra mim certas horas, mas em outras ficou bem cômodo, uma vez que lhe atribuem tudo de ruim na minha imagem e semelhança.
- Então o bem e o mal tem a mesma origem... Sua personalidade...
- Não, isso não estava em mim até vocês existirem, não sei se despertou, ou se criou-se a partir de vocês... talvez em um simulacro eu tenha virado vossa imagem e semelhança...
- Espero que não... com teus poderes... seria perigoso...
- Poderes? Já não os tenho... como disse... enfraqueceram....
- Então é um mortal?
- Não infelizmente ainda tenho a vida eterna... isso ninguém pode mudar... felizmente não lhes dei esse dom... ou, a essa altura, já teriam me destronado e certamente destruído esse mundo...
- Ao longo dos tempos nada pudeste fazer nas guerras? Deixaste tantos morrerem por pura omissão?
- Já ouviu “dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.”? Dei ao povo o que era do povo, o livre arbítrio, nunca controlei uma só morte, nem as naturais, o corpo é de vocês... cuidem dele como entenderem... e a morte que se encarregue de julgar os cuidados que cada um teve... é certo que alguns bebês nascem mortos, ou morrem antes de terem tempo para se corromperem pela sociedade... mas isso também não sei explicar... está no ventre eu dou o sopro, mas quem apaga não sou eu.... talvez seja verdade que pagam pelos erros paternos... por isso vocês chegaram onde estão... pagando pelos meus erros.... pelos seus próprios em vidas passadas...
- Cresci aprendendo que você não erra, engraçado você me dizer isso agora...
- Erro sim, errei muito já, mas aprendi com os erros assim como vocês... essa conversa está me deprimindo... acho que quero morrer...
- Em pensar que isso começou porque você queria me persuadir a mudar de ideia quando eu queria a mesma coisa, você conseguiu o que queria... estou melhor agora... não quero mais morrer... percebo que riquezas... poder... nada disso traz felicidade... que mesmo sendo uma puta... posso ser feliz com o que tenho e o que sou... melhor do que ser como você que tem tudo e não tem nada...
- Pensas que tenho tudo... mas não sabes de nada...
- Estas aqui porque quer... esses trajes... são só aparência... e aliás chega de conversa, tenho que trabalhar... a não ser que vá pagar minha hora....
- Pago... sempre tive todo o dinheiro do mundo e não consegui nada com isso... não fui feliz... poder... dinheiro... nunca trouxe felicidade a mim nem a vocês... e obliquamente estou eu aqui te oferecendo dinheiro por atenção...
- Bom queria ser psicóloga, pague pela hora da psicóloga, já que pagar pela hora da puta te agride... nunca trabalhei como tal... você sabe que não tive a oportunidade de fazer o curso...
- Não é que me agrida... é que me veio a mente o fato de que a muito tempo não pago pela hora de uma puta... para literalmente fazer o que se deve fazer...
- Essa foi ótima... com o perdão do trocadilho... mas... está me gozando?
- Não! Eu sempre que pude fiz isso... é uma necessidade até mesmo pra mim... e não nego que me dê prazer... se não porque achas que teriam caprichado tanto num sistema reprodutor a ponto de ele poder dar prazer?
- Ótimo, essa eu quero experimentar... isso deve ser de outro mundo... mas não aqui... vamos para aquele hotel do outro lado da rua...
- Está bem, deixe-me só providenciar dinheiro...
- E como você faz???
- Simplesmente penso nele e ele aparece no meu bolso...
...
- Me veja um quarto...
- Quarto seiscentos e sessenta e seis! Pagamento adiantado...
- Entre... … … ...
- Eis a melhor de minhas criações … o corpo feminino...
- Então vai ficar só olhando...

-Ai droga não acredito que esse idiota morreu... que ironia logo hoje que ele achava que era Deus... ontem ele era napoleão... pelo menos deixou meu dinheiro nos bolsos...





Renato Gomez
Natural de Santo André-SP, radicado em Porto Velho-RO. Mestre em Estudos Literários. Autor de quatro livros.
Escreve ao Ad Substantiam quinzenalmente às quartas-feiras.

Contato: rblackout@gmail.com


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