Crônica de uma vadia feliz

Hoje, ao acordar, me senti como a primeira-dama interina ao se exibir na capa de uma revista noutro dia: bela, recatada e do lar. Mas essa sensação ridícula durou tão pouco que eu nem pude me odiar por isso. Olhei a minha volta e vi o quanto o lençol era branco, cheiroso e o quanto minhas curvas ainda o adornavam por debaixo daquela alvides. No auge de meus 60 anos, eu ainda fazia inveja a algumas mulheres que de fato eram belas, recatas e do lar. Mas nem sempre foi assim. Eu já fui puta, safada e do bordel.
Continuo safada, sou puta de um homem só (quando quero ser) e já não vivo no bordel. Embora minha vida tenha mudado da água pro vinho, continuo a mesma mulher, livre acima de tudo. Quando trabalhava no puteiro, observava e convivia diariamente com um dos odores mais fétidos da raça humana: a catinga da hipocrisia.
Vários clientes frequentavam a casa no calar da noite, mas durante o dia pregavam ser homens de bem, conservadores dos bons costumes e da moral. Vários eram casados e, em casa, fodiam as esposas no escuro, sem tirar nem as meias chorulentas e sem se preocupar em dar-lhes o mínimo prazer, afinal, queriam que elas continuassem belas, recatadas e do lar.
Outros eram metidos a machões, se autodeclaravam homofóbicos, mas na hora da transa pagavam dobrado pelo nosso programa e pelo nosso silêncio, pois apreciavam um bom beijo grego seguido de um fio terra.
Haviam os devassos e pervertidos que se pudessem morariam ali, e cá entre nós eram o melhor tipo de homem, sabiam nos tratar, nos olhavam nos olhos e tratavam com a igualdade que se deve. Respeitavam desejos e vontades, muitas vezes até faziam uma de nós gozar com uma boa chupada.
Em alguns dias, apanhávamos, éramos violentadas. Em outros, desrespeitadas, ofendidas e humilhadas. Nos sentíamos inferiores, como se nem humanas fossemos. Mas eram eles que não eram humanos. Eram eles que exalavam aquele podre odor.
Hoje, a catinga da hipocrisia somada ao gosto amargo de sangue que provém do machismo não faz parte do meu cotidiano. Hoje, o medo constante do estupro ainda me ronda quando caminho sozinha pela rua, mas no recato do meu lar, me sinto segura. E não pense que por uma mulher ser puta ela vive sem medo da violação do seu corpo. Ela tem muito mais medo, pois está exposta o tempo todo.
Hoje, nem ouvir alguém chamando o mais desprezível dos políticos de filho da puta vai me tirar do sério. Sim, isso me irrita. Fosse ele filho de uma puta e saberia tratar as mulheres, as pessoas, os seres humanos, com respeito.
Mas o fato que me lembrei hoje, quando me senti bela, recatada e do lar por alguns infelizes segundos, é que depois de todos esses anos sentando em um caralho diferente por hora, hoje acordei apaixonada, enamorada do homem que me aceitou como eu era, que me deu a mão e voou junto comigo. Ele não me tirou do puteiro. Eu quis sair. Quando decidi, ele estava lá, havia aguardado por esse dia, então, nos casamos. Desde então, ele e eu vivemos em harmonia, sem abusos e autoritarismos.
Hoje, sou uma vadia livre e feliz.



Renato Gomez

Natural de Santo André-SP, radicado em Porto Velho-RO. Mestre em Estudos Literários. Autor de quatro livros.
Escreve ao Ad Substantiam quinzenalmente às quartas-feiras.

Contato: rblackout@gmail.com

Comentários

  1. O submundo numa ótica quase poética, mostrando que a sensibilidade conversa com a realidade numa linguagem real e otimista.

    ResponderExcluir
  2. O submundo numa ótica quase poética, mostrando que a sensibilidade conversa com a realidade numa linguagem real e otimista.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas