Crônica de um Zé Ninguém
Nasci prematuro, 29 semanas, a parteira que atendia no
prostíbulo que minha mãe trabalhava me condenou assim que me olhou, mas quem
não aguentou foi minha mãe, morreu duas horas após me dar a luz.
Obviamente, não pude ficar na zona do meretricio, foi a
segunda seleção da minha vida, se não tivesse sido o espermatozoide mais
esperto na primeira, talvez uma menina tivesse nascido e ficaria ali mesmo,
crescendo para aprender o que seria quando adulta e pedindo pra voltar a ser
criança quando já tivesse idade avançada.
Meu pai? Não conheci. Talvez nem minha mãe o conhecesse.
O fato é que ninguém nunca reclamou minha existência. Fui amamentado por outra
puta recém-parida que perdera o filho no parto. Com seis meses fui desmamado e
deixado na porta de uma igreja.
Até então nem eu sabia, mas eu sou portador de
necessidades especiais, possuo uma atrofia na perna direita. Quase
imperceptível quando eu nascera, mas que me exige o uso de muleta. Hoje eu sei
bem o que é ser deficiente físico no dia a dia de uma grande cidade. Você se
torna invisível a maior parte do tempo e quando alguém te enxerga é pra te
odiar.
Com 14 eu fugi do orfanato na qual o pessoal da igreja me
levou. Era
constantemente maltratado. Um dia vi um menino da minha
idade ganhando a vida como engraxate. Resolvi tentar a vida. Morava debaixo de
um viaduto. Tinha duas mudas de roupa e uma caixa de engraxate. Com meu ofício,
eu ganhava o suficiente pra uma refeição. Quando ganhava pra duas, eu guardava,
tinha dia que não dava pra nenhuma.
Sou negro. Alguns acham que sou vitimista. Outros acham
que o racismo está na minha cabeça. Alguns dizem que não existe. A verdade é
que muita gente me dizia não quando oferecia a graxa, mas quando um colega de
labor se aproximava eles o chamam sem que oferecesse. O fato de ele ser loiro
do olho verde nada tem a ver. Acho que ele era melhor engraxate do que eu.
Alias, eu era odiado pelos outros meninos que lustravam
sapatos por ai. Descobriram que sou bissexual e me agrediram diversas vezes por
isso. Eles falavam que eu sou uma aberração.
Terminei o ensino médio na raça depois que completei 18
anos, tentei cursar antes, mas eles não deixam menino de rua, sem pai e nem
mãe, se matricular na escola, tem que ter um responsável. Sempre fui
responsável por mim.
Já fiz o vestibular concorrendo através do sistema de
cotas para
negros e para deficientes. Não passei. Me disseram que
tenho que fazer cursinho, mas não tenho dinheiro para pagar e o que o governo
oferece gratuitamente é de tarde. Tenho que trabalhar. Muitos colegas da época
da rua viraram bandidos ou morreram usando drogas. Ouço as pessoas dizerem que
é porque não quiseram estudar. Eu quero estudar, mas não
consigo.
Pra arrumar emprego já é uma luta. Uma vez arrumei um
emprego legal de repositor em um supermercado, mas começaram a sumir coisas e
me acusaram. Fui demitido. Não era eu, eu sabia quem era. Era o filhinho de
papai que roubava pra trocar por drogas.
Às vezes, ouço as pessoas sussurrando sobre mim. Falam
que sou um coitado. Não sou. Minhas muletas, minha cor ou minha sexualidade não
me atrapalham em nada, posso concorrer de igual pra igual com qualquer um se
tiver as mesmas oportunidades, o problema é o preconceito. As pessoas já me
olham como se eu fosse incapaz, como se eu fosse ladrão e/ou como se eu fosse
inferior.
Quem eu sou? Eu sou alguém que você passou do lado e
fingiu que não viu. Alguém que você ignorou para não estragar seu dia pensando
sobre desigualdades. Eu sou o filho da puta, o neguinho, o menino de rua, o
mendigo... Prazer, sou Zé Ninguém, órfão, negro, bissexual, pobre e portador de
necessidades especiais que não entende o porquê de tanto ódio contra mim nessa
sociedade meritocrata e hipócrita.
Renato Gomez
Natural de Santo André-SP, radicado em Porto Velho-RO. Mestre em Estudos Literários. Autor de quatro livros.
Escreve ao Ad Substantiam quinzenalmente às quartas-feiras.
Contato: rblackout@gmail.com
Muito bom. Não sei se foi proposital, caso sim, ignore-me, por gentileza. Mas o texto me pareceu não ter sido trabalhado adequadamente. Ficou algo indefinido, se um desabafo da personagem, se uma crítica social. Ou seja, o primeiro seria um texto onde a personagem seria a protagonista (uso no feminino porque hoje "personagem" pode ser usado nos dois gêneros e quando eu era criança só podia ser no feminino; então opto pelo que me acostumei). No segundo, o autor seria o protagonista.
ResponderExcluirObrigado, Rubem. Foi proposital, gosto dessas indefinições narrativas para as crônicas, dando exatamente esse contraste entre narrativa e desabafo, ao meu ver, dá um tom de mais proximidade entre leitor e texto...
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