"Ópio do povo" e"Tática" - Religião sob a ótica de Karl Marx e Michel de Certeau




O texto a seguir tem como tema a religiosidade como construção de visões de mundo a partir de dois conceitos, o de “ópio do povo” de Karl Marx, que é bastante simplificado e vulgarizado, porém é mais complexo do que se pensa e o de “tática” e “consumo ativo” de Michel de Certeau, tentarei mostrar que esses conceitos passam por diversas aproximações, porém esse não é um texto conciliador, pois foca, também, nos pontos em que se distanciam e, inclusive, nos momentos em que um conceito é melhor que o outro para a prática da esquerda.
Para Marx a religião não é dialética apenas na sua manifestação organizacional e institucional e em sua atuação social, ora reacionária, ora progressista, transformando-se historicamente com a sociedade, assumindo novas formas a partir dela e para ela, mas é também dialética no ato do indivíduo igualmente histórico e no costume religioso, essas faces da religião e da religiosidade são constitutivas do próprio ato, ao mesmo tempo que ela é um escapismo ela é, também, uma forma de resistência passiva (Algo que Michael de Certeau chama de tática e, de forma um tanto conservadora, de consumo ativo), vejamos como funciona a ideia de “ópio do povo” em Karl Marx:
A miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração, assim como o espírito de estados de coisas embrutecidos. Ela é o ópio do povo. (MARX, 2013, P. 151).

Uma forma de resistência passivam de manter-se vivo, de projetar-se em algo maior, de fugir de uma realidade de exploração. O “ópio do povo” tem, dialeticamente, em si, o escapismo e resistência passiva. Dessa forma, a religião pode assumir diversas manifestações históricas, inclusive revolucionárias, mas a religiosidade, o sentimento em si, é de escapismo, sendo este escapismo também uma forma de sobrevivência desesperada, de construir imageticamente, de criar ou crer numa visão de mundo que a pobreza é uma virtude e a avareza do patrão o condenará ao inferno, por exemplo.
Porém, isso tem um problema: Essa resistência é passiva, se dá dentro da rede de dominação ideológica e discursiva da classe exploradora, sem romper com esta. Michel de Certeau vê beleza nesta operação, a chama de tática procura, como todo aquele que deixou de acreditar nas grandes narrativas, os vazios do sistema existente em um pragmatismo melancólico. A tática se dá dentro da rede da estratégia:
Chamo de estratégia o cálculo (ou a manipulação) das relações de forças que se torna possível a partir do momento em que um sujeito de querer e poder (Uma empresa, um exército, uma cidade, uma instituição científica) pode ser isolado. A estratégia postula um lugar suscetível de ser circunscrito como algo próprio e ser a base de onde se podem gerir as relações com uma exterioridade de alvos ou ameaças (...) (CERTEAU, 1994, p. 93).

Tática é:
A ação calculada que é determinada pela ausência de um próprio. Então nenhuma delimitação de fora lhe fornece a condição de autonomia. A tática não tem por lugar senão  o do outro. (...) a tática é movimento “dentro do campo de visão do inimigo” (...) (CERTEAU, 1994, p. 93).

Estratégia é o meio pelo qual a racionalização tecnocrática se organiza, se espalha, se estabelece em um espaço, criando uma linguagem dominadora e estruturas de dominação, uma imagem de ser consumida por um público. Tática é o espaço do “mais fraco” na teia do consumo, que constrói dentro desta própria teia de dominação uma forma de se apropriar da mesma, uma nova linguagem dentro da linguagem de dominação. A tática existe dentro da estratégia, em seus espaços vazios, construindo novos significados, sempre em relação ao outro.
Lembrando que o indivíduo, tanto para Certeau como para Marx, oferece a possibilidade de perceber diversas formas de pressões que atuam e que o atravessam (Condições culturais), em nenhum dos dois teóricos o indivíduo é, porém, passivo, ele constrói significados para si apesar da dominação, condicionados pela ideologia dominante, mas enquanto para Certeau isso é consumo ativo, para Marx isso é resistência negativa.
Eis o problema: Esta resistência, esse “consumo ativo”, tendo aqui em vista a problemática da religião, é, de forma inversamente proporcional, uma resistência passiva, não questiona estruturalmente a “rede” que consome, assim, a “micro-resistência”, a “tática” de Certeau, quando tida como proposta política, contribui, na melhor das hipóteses, com um conservadorismo fantasiado de progressismo (Como podemos ver em diversos movimentos identitários e em páginas de redes sociais, como a quebrando o tabu).
É disso que Marx fala, ainda neo-hegeliano, fala com o “ópio do povo”. Ele define a religião e a religiosidade dialeticamente de uma forma muito parecida com o que faz Michel de Certeau com os conceitos de “estratégia” e “tática”, a grande diferença é a prática: Certeau fica ai, defende essa micro-resistência como fim e modus operandi político, já Marx vê nisso resistência negativa, falsa consciência, como uma forma de aceitar o sistema explorador, mesmo o odiando e encontrando formas de manifestar isso por meio, por exemplo, da religião. A religiosidade aliena nesse sentido, de construir uma falsa projeção da realidade social que, ao mesmo tempo que é escapismo é resistência passiva (“A miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real”).
Para Karl Marx, um ateu, a religião é algo completamente sem sentido e a ideia de sobrenatural é  uma superstição ultrapassada e Deus é algo puramente histórico, construído por nós a nossa imagem e semelhança, a população sofredora espelha sua realidade na religiosidade e constrói narrativas em que é heroica, vencedora, predestinada. Uma auto alienação, o sujeito é capaz de reconhecer seu estado de oprimido em sua manifestação religiosa, mas não tem a mesma capacidade de reconhecer os pontos da ideologia dominante que são operacionais em seu cotidiano e enfrenta-los positivamente.
Assim, o sentimento religioso em si é, para Marx e, de um certo ângulo, também para Certeau, mais conservador do que revolucionário. A tomada de posição, a passagem ao ato, pode ser revolucionária, isso é algo a qual a religião pode se condicionar, mas a religiosidade, enquanto tática é, na prática, passividade.

Bibliografia
CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano 1. Artes de fazer. 22ª ed. Editora Vozes, Petrópolis, 1994.
MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. 3ª ed. Boitempo Editorial, São Paulo, 2013.



SUED

Nome artístico de Línik Sued Carvalho da Mota, é romancista, novelista, cronista e contista, tendo três livros publicados, também é graduanda em História pela Universidade Regional do Cariri. Militante comunista, acredita no radicalismo das lutas e no estudo profundo de política, sociologia, História e economia como essenciais para uma militância útil.
Escreve ao Ad Substantiam semanalmente às segundas-feiras.
Contato: lscarvalho160@gmail.com



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